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TV digital na contramão do interesse público
DIOGO MOYSES e GUSTAVO GINDRE
Seria a chance de incentivar o surgimento de novas emissoras. Mas o governo entregou o novo espaço aos atuais radiodifusores
O DECRETO presidencial nš
5.820/06, que estabeleceu o
padrão japonês para a televisão digital brasileira e presenteou radiodifusores com mais uma fatia do
espectro de freqüências, marcou a
consolidação da aliança entre o governo Lula e o principal grupo de comunicação do país, bem como o rompimento definitivo com os compromissos históricos que o elegeram.
A escolha de um ex-funcionário da
Rede Globo -e ele próprio um radiodifusor- para ocupar o Ministério
das Comunicações apenas explicita
tal opção, baseada no pragmatismo
eleitoral em detrimento do interesse
público. Forjado na conveniência
mútua, o decreto mantém a sina das
políticas de comunicação: primeiro,
com militares, oligarquias e financistas; agora, sob as barbas de quem um
dia ergueu a bandeira da democracia.
Para saciar o apetite dos radiodifusores, o governo, simultaneamente,
afrontou a Constituição Federal, infringiu leis ordinárias e contrariou
outros atos presidenciais, como o decreto nš 4.901/03, que instituiu o
SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital) e previa o uso da TV para a democratização da informação, o desenvolvimento de ciência e tecnologia
nacionais, a inclusão social e a participação da sociedade civil por meio de
um comitê consultivo.
Em ação recente movida na Justiça,
o Ministério Público Federal apontou
uma série de ilegalidades.
Não há, até hoje, garantia de incorporação das pesquisas nacionais -ao
contrário, avanços como a modulação
"Sorcer", da PUC-RS, foram descartados sem justificativa. A concentração
do espectro da TV (um bem público e
finito) nas mãos do atual oligopólio
privado tende a aumentar. O comitê
consultivo deixou de ser convocado
em 2005, no mandato do atual ministro -marcado pela total falta de
transparência e por relações promíscuas com as emissoras-, sem concluir seus trabalhos. Nem sequer os
documentos produzidos no interior
do SBTVD foram divulgados oficialmente pelo governo.
A afronta à lei não pára aí. Uma das
mudanças técnicas mais profundas
na transição da tecnologia analógica
para a digital é a capacidade de compressão dos sinais. Isso permite que,
no mesmo espaço do espectro por onde hoje trafega uma única programação (o que hoje chamamos de "canal"), possam ser transmitidos simultaneamente até oito programações.
Essa seria a chance de desconcentrar o mercado e incentivar o surgimento de novas emissoras (públicas,
privadas, estatais), permitindo que a
diversidade de nossa cultura enfim
habitasse a tela da TV.
O governo, porém, optou por entregar todo o novo espaço aos atuais radiodifusores. Em vez de novos produtores de conteúdo, veremos a multiplicação de cultos religiosos e vendas
de tapetes feitos pelas mesmas famílias que controlam a TV brasileira.
E, para entregar um novo canal de
TV para as atuais emissoras sem a
aprovação do Congresso (determinação da Constituição), cometeu dupla
ilegalidade: apoiou-se na farsa jurídica da "consignação" (legalmente aceitável apenas se o novo canal fosse um
simples "espelho" da programação
analógica) e, simultaneamente, violou a lei nš 4.117/62, que impede a
transmissão de duas ou mais programações pelo mesmo concessionário.
Outra questão importante é a da interatividade. Ainda que o decreto nš
5.820/06 a apresente como uma das
características da TV digital, a interatividade não pode ser utilizada com a
atual legislação (de 1962), que define
a radiodifusão como um serviço a ser
"recebido" -portanto, unidirecional.
Mas, mesmo que se torne juridicamente "possível" com nova legislação, a oferta dos recursos digitais de
interesse social não está nos planos
do governo, que afirma ser a interatividade um serviço para o "mercado"
vender àqueles que podem pagar,
criando uma nova categoria de excluídos: a dos que não podem pagar pelo
canal de retorno, necessário para tornar a comunicação bidirecional.
(Não custa lembrar que, com cerca
de R$ 350 milhões -menos de 10%
dos recursos inutilizados do Fundo
de Universalização dos Serviços de
Telecomunicações-, seria possível
montar, segundo dados da Fundação
CPqD, uma rede nacional de acesso
banda larga sem fio que servisse como
canal de retorno, permitindo à população de baixa renda acesso a serviços
de educação, telemedicina, governo
eletrônico, e-mail e serviços bancários, por exemplo.)
Em resumo, o decreto presidencial,
além de ser um erro político, que desperdiça a chance histórica de democratizar as comunicações e incluir socialmente milhões de brasileiros, é
flagrantemente ilegal, e, por isso, deve
ser questionado na Justiça. Ao governo, resta defender o indefensável: o
aprofundamento da concentração
dos meios de comunicação e a manutenção da exclusão social, além de
uma tese jurídica sem fundamento.
DIOGO MOYSES , 27, radialista, e GUSTAVO GINDRE , 37,
jornalista, são coordenadores do Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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