São Paulo, quarta-feira, 13 de setembro de 2006

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TV digital na contramão do interesse público

DIOGO MOYSES e GUSTAVO GINDRE

Seria a chance de incentivar o surgimento de novas emissoras. Mas o governo entregou o novo espaço aos atuais radiodifusores

O DECRETO presidencial nš 5.820/06, que estabeleceu o padrão japonês para a televisão digital brasileira e presenteou radiodifusores com mais uma fatia do espectro de freqüências, marcou a consolidação da aliança entre o governo Lula e o principal grupo de comunicação do país, bem como o rompimento definitivo com os compromissos históricos que o elegeram.
A escolha de um ex-funcionário da Rede Globo -e ele próprio um radiodifusor- para ocupar o Ministério das Comunicações apenas explicita tal opção, baseada no pragmatismo eleitoral em detrimento do interesse público. Forjado na conveniência mútua, o decreto mantém a sina das políticas de comunicação: primeiro, com militares, oligarquias e financistas; agora, sob as barbas de quem um dia ergueu a bandeira da democracia.
Para saciar o apetite dos radiodifusores, o governo, simultaneamente, afrontou a Constituição Federal, infringiu leis ordinárias e contrariou outros atos presidenciais, como o decreto nš 4.901/03, que instituiu o SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital) e previa o uso da TV para a democratização da informação, o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacionais, a inclusão social e a participação da sociedade civil por meio de um comitê consultivo.
Em ação recente movida na Justiça, o Ministério Público Federal apontou uma série de ilegalidades.
Não há, até hoje, garantia de incorporação das pesquisas nacionais -ao contrário, avanços como a modulação "Sorcer", da PUC-RS, foram descartados sem justificativa. A concentração do espectro da TV (um bem público e finito) nas mãos do atual oligopólio privado tende a aumentar. O comitê consultivo deixou de ser convocado em 2005, no mandato do atual ministro -marcado pela total falta de transparência e por relações promíscuas com as emissoras-, sem concluir seus trabalhos. Nem sequer os documentos produzidos no interior do SBTVD foram divulgados oficialmente pelo governo.
A afronta à lei não pára aí. Uma das mudanças técnicas mais profundas na transição da tecnologia analógica para a digital é a capacidade de compressão dos sinais. Isso permite que, no mesmo espaço do espectro por onde hoje trafega uma única programação (o que hoje chamamos de "canal"), possam ser transmitidos simultaneamente até oito programações.
Essa seria a chance de desconcentrar o mercado e incentivar o surgimento de novas emissoras (públicas, privadas, estatais), permitindo que a diversidade de nossa cultura enfim habitasse a tela da TV.
O governo, porém, optou por entregar todo o novo espaço aos atuais radiodifusores. Em vez de novos produtores de conteúdo, veremos a multiplicação de cultos religiosos e vendas de tapetes feitos pelas mesmas famílias que controlam a TV brasileira. E, para entregar um novo canal de TV para as atuais emissoras sem a aprovação do Congresso (determinação da Constituição), cometeu dupla ilegalidade: apoiou-se na farsa jurídica da "consignação" (legalmente aceitável apenas se o novo canal fosse um simples "espelho" da programação analógica) e, simultaneamente, violou a lei nš 4.117/62, que impede a transmissão de duas ou mais programações pelo mesmo concessionário. Outra questão importante é a da interatividade. Ainda que o decreto nš 5.820/06 a apresente como uma das características da TV digital, a interatividade não pode ser utilizada com a atual legislação (de 1962), que define a radiodifusão como um serviço a ser "recebido" -portanto, unidirecional.
Mas, mesmo que se torne juridicamente "possível" com nova legislação, a oferta dos recursos digitais de interesse social não está nos planos do governo, que afirma ser a interatividade um serviço para o "mercado" vender àqueles que podem pagar, criando uma nova categoria de excluídos: a dos que não podem pagar pelo canal de retorno, necessário para tornar a comunicação bidirecional.
(Não custa lembrar que, com cerca de R$ 350 milhões -menos de 10% dos recursos inutilizados do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações-, seria possível montar, segundo dados da Fundação CPqD, uma rede nacional de acesso banda larga sem fio que servisse como canal de retorno, permitindo à população de baixa renda acesso a serviços de educação, telemedicina, governo eletrônico, e-mail e serviços bancários, por exemplo.)
Em resumo, o decreto presidencial, além de ser um erro político, que desperdiça a chance histórica de democratizar as comunicações e incluir socialmente milhões de brasileiros, é flagrantemente ilegal, e, por isso, deve ser questionado na Justiça. Ao governo, resta defender o indefensável: o aprofundamento da concentração dos meios de comunicação e a manutenção da exclusão social, além de uma tese jurídica sem fundamento.


DIOGO MOYSES , 27, radialista, e GUSTAVO GINDRE , 37, jornalista, são coordenadores do Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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