UOL




São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O "olhar branco"

MARCELO TRAGTENBERG


Nos melhores postos da sociedade estão os brancos. Os negros estão nos piores e são, muitas vezes, ligados a crimes

"Claro que todas as pessoas brancas são racistas" é o título instigante de um artigo do jornal inglês "The Guardian" de 3/7/02, em que o autor mostra como se constrói desde cedo um "olhar branco".
Nos melhores postos da sociedade estão os brancos. Os negros estão nos piores e são, muitas vezes, ligados a crimes. Mesmo os brancos que, conscientemente, não crêem que os negros sejam inferiores, constroem imagens negativas inconscientes dos negros. Não se trata de atribuir culpa a ninguém, mas esse "olhar branco" dos que detêm os postos de decisão social ajuda a reproduzir desigualdades raciais.
E na pátria amada, Brasil? Dados do Ipea indicam graves desigualdades raciais (exemplo: 10% dos brancos e 2% dos negros têm título universitário).
E se a educação básica fosse melhorada? O mesmo estudo do Ipea indica que políticas universalistas aumentaram a escolaridade geral no Brasil, mas a mesma desigualdade entre negros e brancos se manteve desde 1929! Para essa desigualdade deve estar ajudando o racismo na educação escolar.
Em Cuba, após 44 anos da revolução que forjou o país provavelmente mais igualitário das Américas, seu presidente e seu vice, Fidel e Raul Castro, declararam que realizam ações afirmativas para corrigir o fato de negros morarem em lugares piores, terem menor acesso à universidade e menor espaço político dentro do PC (www.afrocubaweb.com).
Esses exemplos mostram os limites de políticas universalistas, mesmo as radicais. A visão liberal do direito, originária da Revolução Francesa, prega que o Estado deve se manter neutro, que a igualdade formal construirá a igualdade racial. Em livro recente, o ministro do STF Joaquim Barbosa Gomes mostra que o direito moderno sugere complementar ações de caráter universal com ações afirmativas, para atingir a verdadeira igualdade.
Infelizmente, parte da esquerda brasileira ainda acha que a questão racial se resolverá com o advento do socialismo e que essa questão, como outras, divide a luta dos trabalhadores. Mas o futuro não se constrói a partir do presente?
Nem toda a esquerda está nessa. Florestan Fernandes já apontava, em 1965, a concentração racial da riqueza e do poder e a necessidade de ações que corrigissem essa distorção; e o PSTU defende ações afirmativas e cotas para negros nas universidades públicas.
Sobre as cotas, é falso dizer que o vestibular fornece oportunidades iguais a todos os candidatos, como sugeriu Demétrio Magnoli em artigo na Folha (pág. A3, 29/7/03): "o filho do ministro, juiz ou deputado torna-se um plebeu". É a falácia da democracia formal -quem frequenta escolas melhores não precisa trabalhar, tem pais formados em universidades e não sofre racismo já sai na frente.
Por outro lado, será que a nota num vestibular deve ser o único critério de entrada na universidade? No livro "The Shape of the River" ("A Forma do Rio"), os reitores das universidades Princeton e Harvard analisam o efeito de longo prazo das admissões com critérios raciais em universidades dos EUA (não existem cotas para negros nessas universidades desde 1978, mas critérios étnicos de pontuação). Eles defendem ardorosamente a manutenção desses critérios, complementares às notas no exame nacional norte-americano (SAT).
Será que alguém contesta o mérito dessas universidades? Só que as notas no SAT são pouco para gerar classes com diversidade racial suficiente para que brancos e negros convivam e se preparem para uma sociedade plural, questionando o "olhar branco". Onde foram extintos os critérios raciais de admissão (Califórnia e Texas), a entrada de negros e hispânicos na universidade baixou dramaticamente. Já no nosso Brazilzão, é notável o "olhar branco" da academia e dos meios de comunicação, que toleram a falta de diversidade na nossa universidade e não consideram aberrante que apenas 2% dos alunos da USP sejam negros. São as universidades públicas que formam a maioria dos quadros do poder na nossa sociedade. Por outro lado, a Universidade Harvard tem critérios raciais até para admissão de professores, pois os alunos precisam conviver com professores negros.
Argumenta-se que os profissionais negros das cotas serão discriminados. Isso não tem nada a ver com cotas. Eles já o são! É preciso intervir no mercado de trabalho, exigindo algo como nos EUA (que a proporção de empregados corresponda à composição racial local).
É preciso um leque amplo de ações afirmativas para tornar o Brasil mais plural. Deve haver maior presença de negros na TV, como propõe o senador Paulo Paim. Será que a composição racial dos conselhos editoriais e da redação desta Folha e d" "O Estado de S. Paulo" teria correlação com a posição refratária a ações afirmativas desses jornais? É urgente um programa de formação de intelectuais negros, como propôs o prof. Henrique Cunha Jr., da UFC, pra mudar a cor do clube (do Bolinha) da ciência brasileira.
Lula foi a favor de cotas para negros na eleição de 2002, mas o ministro da Educação está se omitindo, deixando às universidades a decisão sobre sua diversidade. O Estado norte-americano não baixou lei de cotas, mas aumentou o orçamento das universidades que as adotassem. Vem aí uma reforma universitária que, esperamos, não implante o ensino pago nas universidades públicas.
Uma sugestão, que minimizaria conflitos, seria aumentar imediatamente as vagas e as verbas nas universidades públicas que façam um esforço pela diversidade, ampliando o acesso e a permanência de negros, índios e pessoas de baixa renda, com programas de apoio financeiro e pedagógico.


Marcelo H. R. Tragtenberg, doutor em física pela USP, pós-doutor pela Universidade de Oxford (Inglaterra), é professor do Departamento de Física da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e membro dos Grupos de Trabalho de Etnia, Gênero e Classe da Andes-SN e da APUFSC.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Sheila Lobato: O poder da beleza

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.