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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil deve continuar a missão no Haiti?
SIM
Solidariedade fraterna
GONÇALO MOURÃO
O Brasil foi ao Haiti com muito
mais que 1.200 soldados. Foi com o
propósito de contribuir decididamente
para a promoção da estabilidade política e do desenvolvimento econômico
com justiça social em um país cada vez
mais próximo de nós, à medida que vamos saldando a extraordinária dívida
de séculos de desconhecimento e distanciamento. O contato com a população haitiana nos ajuda a confrontar nosso próprio passado: boa parte dos brasileiros afrodescendentes vieram do antigo Daomé (atual Benin), de onde descendem majoritariamente os haitianos.
O Haiti foi o primeiro país a ficar independente na América Latina, em 1º/1/
1804. Primeiro país negro livre no mundo moderno, sua independência foi
passo decisivo numa busca dramática
pela liberdade, que continua até hoje.
O Brasil foi ao Haiti imbuído de um
sentimento de solidariedade fraterna
que o próprio Haiti, no continente americano, foi um dos primeiros a expressar. Seus próceres, logo após a independência, contribuíram para a libertação
continental, financiando e aconselhando Miranda e Bolívar. Pediam apenas,
em troca, a libertação dos escravos da
América espanhola! Menos conhecido,
e mais distante de nossa região, foi o
episódio em que enviaram à Grécia um
navio carregado de café em apoio a sua
luta por independência. O bom café haitiano deu, assim, um exemplo de solidariedade que pode servir de inspiração
em um cenário contemporâneo freqüentemente marcado pela miopia do
interesse no ganho imediato.
O mesmo espírito solidário inspira
nossa presença no Haiti. Nossa atitude é
diferente de esforços anteriores, que
privilegiavam o uso da força. O Brasil
não está lá para impor soluções sob a
bandeira da ONU. Defendemos um esforço concentrado em favor da consolidação democrática e da reorganização
institucional, econômica e social do
país. A liberdade, hoje, se traduz na busca de soluções adaptadas às circunstâncias locais para a vigência de instituições
democráticas sólidas e o desenvolvimento sustentável com justiça social.
Não nos iludamos. Nada é fácil no
Haiti. O país mergulhou em anos de
aviltamento que levaram até ao paradoxo do fenômeno cruel dos "boat people", grupos que, se sentindo desprovidos de um futuro em sua própria terra,
não hesitam em arriscar a vida na busca
de oportunidades alhures.
O Brasil deseja ver o Haiti integrado à
família latino-americana, abrindo
oportunidades de cooperação que, somadas a outros esforços de doadores do
mundo desenvolvido, ajudem os haitianos a reconstruir seu país. Muitos trabalharam e trabalham no Haiti para a implantação daquela sociedade livre, justa
e digna que o país vem procurando desde o início de sua história, às vezes de
maneira dramática. Muitos morreram
ou desistiram, mas a sociedade haitiana,
por mais vulnerável e carente, continua
a caracterizar-se por uma forte identidade nacional e por um anseio comovente por liberdade e desenvolvimento.
O general Urano Bacellar foi contribuir, generosamente, para este objetivo
de uma sociedade mais próspera e justa,
e seu desempenho no Haiti esteve sempre em estrita sintonia com o espírito
que nos inspira a participar de uma missão inovadora de estabilização. Sua tragédia pessoal não pode desviar nosso
país do movimento de solidariedade
que nos levou até lá. Pelo contrário, a
continuidade de nossa presença é uma
demonstração de que estamos e estaremos, definitivamente, ao lado dos haitianos, no bom caminho, apesar das
agruras. Desejamos que as eleições de 7
de fevereiro se realizem em ambiente de
serenidade, abrindo caminho para que
o Haiti saia da agenda do Conselho de
Segurança da ONU e venha a transformar-se no primeiro item da recém-criada Comissão de Construção da Paz.
O Haiti, como o Brasil, foi membro
fundador da Liga das Nações. Às portas
da Segunda Guerra Mundial, o exército
italiano invadiu a Etiópia e, na Liga das
Nações, o embaixador haitiano, representante da única nação negra ali, fez
solitário e contundente protesto em solidariedade ao remoto país agredido.
Condenou o imperialismo italiano e todos os imperialismos e lançou às demais nações uma advertência premonitória, que ainda hoje deve ecoar nos
quatro cantos do mundo: "Temei de vir
a ser um dia a Etiópia de alguém!".
O Brasil está no Haiti para ajudá-lo a
encontrar o destino de liberdade e justiça atrás do qual sempre andou, no resgate dos séculos de desconhecimento e
distanciamento que separaram nações
essencialmente irmãs. É como se tivéssemos escutado, com ouvidos modernos, a advertência feita na Liga das Nações e desejássemos contribuir para que
o Haiti se desenvolva econômica, social
e institucionalmente e, em contraste
com a Etiópia do pré-Segunda Guerra
Mundial, se afirme como nação soberana e democrática integrada a seu entorno e à comunidade internacional.
Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão,
embaixador, é o diretor do Departamento da
América Central e Caribe do Itamaraty.
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