São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil deve continuar a missão no Haiti?

SIM

Solidariedade fraterna

GONÇALO MOURÃO

O Brasil foi ao Haiti com muito mais que 1.200 soldados. Foi com o propósito de contribuir decididamente para a promoção da estabilidade política e do desenvolvimento econômico com justiça social em um país cada vez mais próximo de nós, à medida que vamos saldando a extraordinária dívida de séculos de desconhecimento e distanciamento. O contato com a população haitiana nos ajuda a confrontar nosso próprio passado: boa parte dos brasileiros afrodescendentes vieram do antigo Daomé (atual Benin), de onde descendem majoritariamente os haitianos.
O Haiti foi o primeiro país a ficar independente na América Latina, em 1º/1/ 1804. Primeiro país negro livre no mundo moderno, sua independência foi passo decisivo numa busca dramática pela liberdade, que continua até hoje.
O Brasil foi ao Haiti imbuído de um sentimento de solidariedade fraterna que o próprio Haiti, no continente americano, foi um dos primeiros a expressar. Seus próceres, logo após a independência, contribuíram para a libertação continental, financiando e aconselhando Miranda e Bolívar. Pediam apenas, em troca, a libertação dos escravos da América espanhola! Menos conhecido, e mais distante de nossa região, foi o episódio em que enviaram à Grécia um navio carregado de café em apoio a sua luta por independência. O bom café haitiano deu, assim, um exemplo de solidariedade que pode servir de inspiração em um cenário contemporâneo freqüentemente marcado pela miopia do interesse no ganho imediato.
O mesmo espírito solidário inspira nossa presença no Haiti. Nossa atitude é diferente de esforços anteriores, que privilegiavam o uso da força. O Brasil não está lá para impor soluções sob a bandeira da ONU. Defendemos um esforço concentrado em favor da consolidação democrática e da reorganização institucional, econômica e social do país. A liberdade, hoje, se traduz na busca de soluções adaptadas às circunstâncias locais para a vigência de instituições democráticas sólidas e o desenvolvimento sustentável com justiça social.
Não nos iludamos. Nada é fácil no Haiti. O país mergulhou em anos de aviltamento que levaram até ao paradoxo do fenômeno cruel dos "boat people", grupos que, se sentindo desprovidos de um futuro em sua própria terra, não hesitam em arriscar a vida na busca de oportunidades alhures.
O Brasil deseja ver o Haiti integrado à família latino-americana, abrindo oportunidades de cooperação que, somadas a outros esforços de doadores do mundo desenvolvido, ajudem os haitianos a reconstruir seu país. Muitos trabalharam e trabalham no Haiti para a implantação daquela sociedade livre, justa e digna que o país vem procurando desde o início de sua história, às vezes de maneira dramática. Muitos morreram ou desistiram, mas a sociedade haitiana, por mais vulnerável e carente, continua a caracterizar-se por uma forte identidade nacional e por um anseio comovente por liberdade e desenvolvimento.
O general Urano Bacellar foi contribuir, generosamente, para este objetivo de uma sociedade mais próspera e justa, e seu desempenho no Haiti esteve sempre em estrita sintonia com o espírito que nos inspira a participar de uma missão inovadora de estabilização. Sua tragédia pessoal não pode desviar nosso país do movimento de solidariedade que nos levou até lá. Pelo contrário, a continuidade de nossa presença é uma demonstração de que estamos e estaremos, definitivamente, ao lado dos haitianos, no bom caminho, apesar das agruras. Desejamos que as eleições de 7 de fevereiro se realizem em ambiente de serenidade, abrindo caminho para que o Haiti saia da agenda do Conselho de Segurança da ONU e venha a transformar-se no primeiro item da recém-criada Comissão de Construção da Paz.
O Haiti, como o Brasil, foi membro fundador da Liga das Nações. Às portas da Segunda Guerra Mundial, o exército italiano invadiu a Etiópia e, na Liga das Nações, o embaixador haitiano, representante da única nação negra ali, fez solitário e contundente protesto em solidariedade ao remoto país agredido. Condenou o imperialismo italiano e todos os imperialismos e lançou às demais nações uma advertência premonitória, que ainda hoje deve ecoar nos quatro cantos do mundo: "Temei de vir a ser um dia a Etiópia de alguém!".
O Brasil está no Haiti para ajudá-lo a encontrar o destino de liberdade e justiça atrás do qual sempre andou, no resgate dos séculos de desconhecimento e distanciamento que separaram nações essencialmente irmãs. É como se tivéssemos escutado, com ouvidos modernos, a advertência feita na Liga das Nações e desejássemos contribuir para que o Haiti se desenvolva econômica, social e institucionalmente e, em contraste com a Etiópia do pré-Segunda Guerra Mundial, se afirme como nação soberana e democrática integrada a seu entorno e à comunidade internacional.


Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão, embaixador, é o diretor do Departamento da América Central e Caribe do Itamaraty.


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