São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil deve continuar a missão no Haiti?

NÃO

Um tiro no Haiti

JOÃO HERRMANN NETO

"O Brasil o tirou de mim."
(Maria Ignez Bacellar)

 
O Haiti foi a única nação negra liberta das Américas, teve um governo monárquico e independente e exibiu a mais próspera economia do Caribe. Hoje, vive nos EUA. Tornou-se uma nação desnutrida de povo. A maior fração de seus habitantes se auto-exilou no continente. Os recursos enviados do estrangeiro pelos nativos constituem receita fundamental à economia miserável da ilha. No contraponto, muito do ilícito nacional é consentido pela conexão haitiana em solo americano. A burguesia negra ocupa um Everest social num relevo de miséria e, mancomunada com interesses estrangeiros, praticou regimes títeres, assassinatos em massa e, vil, fez do vodu uma arma tirânica.
O panorama social é escatológico. Trafegar entre sua gente nos mostra a inumanidade do nosso tempo. O panorama econômico é desértico e tem como moldura uma atividade laboral escravista. O panorama político é convulso e zerado institucionalmente.
Nas diversas regiões do Haiti, a única certeza é a ausência do Estado. A dissolução das Forças Armadas semeou militares armados e destituídos de comando. A polícia civil é escassa, esparsa e pastoreia a corrupção. O Judiciário entregou o chefe da Suprema Corte à autoridade presidencial nomeada do país e vive à bancarrota. O Executivo, implodido no seu intestino, não exibe burocracia confiável nem dispõe de recursos. A infra-estrutura é colapsada: por exemplo, não se coleta lixo urbano nem se combate o fogo. A habitação popular é um cortiço. Para não corar, é de bom alvitre não falar em saúde e educação. O Legislativo aguarda eleições geridas pela incúria dos organismos estrangeiros, pela ausência completa de processo democrático e absenteísmo partidário.
A ausência de meios impede que uma presença militar se transforme numa força política de estabilização.
Nossa participação como Estado-membro da ONU não nos faz somente observadores mundiais. Neste estágio de Brasil potência-emergente é mister que assumamos nossas obrigações. Nossa inclusão organizacional não é apenas para presidente da República discursar na abertura dos trabalhos na esteira de Osvaldo Aranha, diplomatas exercerem com correção seus trabalhos nas atividades em que o Brasil se relaciona com seus parceiros ou parlamentares serem vistos em missões duvidosas de observadores em Nova York.
Missões espinhosas também devem ser exercidas por um país como o nosso. Mesmo com risco material. Mesmo ao custo de vidas. A paz é axioma do nosso sentido de vida. A democracia, nosso único ponto cardeal. Missões de paz e a busca da democracia justificam nossa presença em qualquer canto do planeta.
Mas jamais participaremos de missões de guerra, de intervenção militar ou de ocupação nacional sob nenhum pretexto e em nenhum tempo. Este é justamente o momento com que nossa missão militar se defronta no Haiti, com 1.200 brasileiros -e um general morto.
Fomos em missão de paz. Eu, pelo voto, a autorizei. Sabia da complexidade, mas também da importância. Havia uma série de compromissos corolários à decisão autorizatória. Além do tempo de permanência outorgado pela ONU, previa-se um aporte vultoso de recursos vindos de nações desenvolvidas. Eram para prover o Haiti de compromissos com a cidadania. De prever seu crescimento e nivelar as disparidades. Para construir um modelo institucional que funcionasse minimamente, que desse condições imediatas de vida a seu povo, que lhes mostrasse, com esperança, o caminho da dignidade.
Tsunamis e Katrinas depois, nada aportou no Haiti, a não ser marés de desolação e furacões de turbulência social.
O estado político no Haiti é hecatômbico e próspero cadinho para um cataclismo social. É previsível um futuro sombrio com repressões, mortes, vandalismo e autoritarismo. Nossos militares não podem se prestar a esse serviço. Não podemos assistir solertes a essa omissão mundial. Os países-membros da ONU não cumpriram sua palavra de ajuda ao Haiti. Sem esses recursos, é impossível promover a paz. Com a palavra quebrada, nossa presença se transformará numa intervenção militar.
Já que o mundo desenvolvido voltou as costas para o Haiti em nome de "outras grandes causas", o Brasil não pode ser conivente com essa injúria. Nossa herança diplomática defende a não-intervenção e a autodeterminação dos povos. Continuar com a presença militar naquele país ameaça que se tornem verdadeiras as acusações de a estarmos fazendo a serviço de alguém ou da cátedra. Jamais a estaríamos fazendo a serviço da democracia e da paz mundial.
Que o general Urano tombe por uma nobre causa. Assim quiseram as palavras de sua viúva dizer. Que o Brasil o tire de nós para colocá-lo na história. Nunca na tirania!


João Herrmann Neto, 59, deputado federal por São Paulo (suspenso ontem pelo PDT), é membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.


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