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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil deve continuar a missão no Haiti?
NÃO
Um tiro no Haiti
JOÃO HERRMANN NETO
"O Brasil o tirou de mim."
(Maria Ignez Bacellar)
O Haiti foi a única nação negra liberta das Américas, teve um governo monárquico e independente e
exibiu a mais próspera economia do
Caribe. Hoje, vive nos EUA. Tornou-se
uma nação desnutrida de povo. A maior
fração de seus habitantes se auto-exilou
no continente. Os recursos enviados do
estrangeiro pelos nativos constituem receita fundamental à economia miserável da ilha. No contraponto, muito do
ilícito nacional é consentido pela conexão haitiana em solo americano. A burguesia negra ocupa um Everest social
num relevo de miséria e, mancomunada com interesses estrangeiros, praticou
regimes títeres, assassinatos em massa
e, vil, fez do vodu uma arma tirânica.
O panorama social é escatológico.
Trafegar entre sua gente nos mostra a
inumanidade do nosso tempo. O panorama econômico é desértico e tem como moldura uma atividade laboral escravista. O panorama político é convulso e zerado institucionalmente.
Nas diversas regiões do Haiti, a única
certeza é a ausência do Estado. A dissolução das Forças Armadas semeou militares armados e destituídos de comando. A polícia civil é escassa, esparsa e
pastoreia a corrupção. O Judiciário entregou o chefe da Suprema Corte à autoridade presidencial nomeada do país e
vive à bancarrota. O Executivo, implodido no seu intestino, não exibe burocracia confiável nem dispõe de recursos.
A infra-estrutura é colapsada: por
exemplo, não se coleta lixo urbano nem
se combate o fogo. A habitação popular
é um cortiço. Para não corar, é de bom
alvitre não falar em saúde e educação. O
Legislativo aguarda eleições geridas pela incúria dos organismos estrangeiros,
pela ausência completa de processo democrático e absenteísmo partidário.
A ausência de meios impede que uma
presença militar se transforme numa
força política de estabilização.
Nossa participação como Estado-membro da ONU não nos faz somente
observadores mundiais. Neste estágio
de Brasil potência-emergente é mister
que assumamos nossas obrigações.
Nossa inclusão organizacional não é
apenas para presidente da República
discursar na abertura dos trabalhos na
esteira de Osvaldo Aranha, diplomatas
exercerem com correção seus trabalhos
nas atividades em que o Brasil se relaciona com seus parceiros ou parlamentares serem vistos em missões duvidosas de observadores em Nova York.
Missões espinhosas também devem
ser exercidas por um país como o nosso.
Mesmo com risco material. Mesmo ao
custo de vidas. A paz é axioma do nosso
sentido de vida. A democracia, nosso
único ponto cardeal. Missões de paz e a
busca da democracia justificam nossa
presença em qualquer canto do planeta.
Mas jamais participaremos de missões de guerra, de intervenção militar
ou de ocupação nacional sob nenhum
pretexto e em nenhum tempo. Este é
justamente o momento com que nossa
missão militar se defronta no Haiti, com
1.200 brasileiros -e um general morto.
Fomos em missão de paz. Eu, pelo voto, a autorizei. Sabia da complexidade,
mas também da importância. Havia
uma série de compromissos corolários
à decisão autorizatória. Além do tempo
de permanência outorgado pela ONU,
previa-se um aporte vultoso de recursos
vindos de nações desenvolvidas. Eram
para prover o Haiti de compromissos
com a cidadania. De prever seu crescimento e nivelar as disparidades. Para
construir um modelo institucional que
funcionasse minimamente, que desse
condições imediatas de vida a seu povo,
que lhes mostrasse, com esperança, o
caminho da dignidade.
Tsunamis e Katrinas depois, nada
aportou no Haiti, a não ser marés de desolação e furacões de turbulência social.
O estado político no Haiti é hecatômbico e próspero cadinho para um cataclismo social. É previsível um futuro
sombrio com repressões, mortes, vandalismo e autoritarismo. Nossos militares não podem se prestar a esse serviço.
Não podemos assistir solertes a essa
omissão mundial. Os países-membros
da ONU não cumpriram sua palavra de
ajuda ao Haiti. Sem esses recursos, é impossível promover a paz. Com a palavra
quebrada, nossa presença se transformará numa intervenção militar.
Já que o mundo desenvolvido voltou
as costas para o Haiti em nome de "outras grandes causas", o Brasil não pode
ser conivente com essa injúria. Nossa
herança diplomática defende a não-intervenção e a autodeterminação dos povos. Continuar com a presença militar
naquele país ameaça que se tornem verdadeiras as acusações de a estarmos fazendo a serviço de alguém ou da cátedra. Jamais a estaríamos fazendo a serviço da democracia e da paz mundial.
Que o general Urano tombe por uma
nobre causa. Assim quiseram as palavras de sua viúva dizer. Que o Brasil o tire de nós para colocá-lo na história.
Nunca na tirania!
João Herrmann Neto, 59, deputado federal por
São Paulo (suspenso ontem pelo PDT), é membro da Comissão de Relações Exteriores e Defesa
Nacional.
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