São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A dispersão das ideologias

TARSO GENRO


A dispersão entre os valores políticos da esquerda e da direita não significa que eles se integraram, mas que as posições não se renovaram


UMA CONSEQÜÊNCIA pouco discutida da crise do "Estado de bem-estar", da superação em curso do modelo produtivo taylorista-fordista e das experiências socialistas do Leste Europeu é o fenômeno da dispersão ideológica. Dispersão e confusão que ocorrem tanto na esquerda como na direita.
Dispersão que chegou a dar sustento à tese de que ambas as posições tinham desaparecido, supostamente comprovando a assertiva do fim das ideologias, mitificação liquidada por Norberto Bobbio no seu pequeno e já clássico volume "Direita e Esquerda".
Na verdade, essa dispersão é fruto de um vazio de respostas. É reflexo da mudança na estrutura de classes do capitalismo global, da emergência do conhecimento e da "financeirização" do capital como fundamentos de um novo processo de acumulação. É fruto da fragmentação da classe operária industrial e da ampliação da "exclusão social". É resultado, também, em termos globais, do envelhecimento da resistência às "reformas" regressivas, em termos de conquistas sociais. Essa resistência não veio acompanhada de respostas ideológicas e programáticas, à esquerda ou à direita, capazes de conquistar maiorias estáveis.
A velha direita afirma sua defesa de um Estado nacional forte, e seu vezo hiperautoritário carimba os movimentos sociais como fruto de uma ideologia do "atraso". Esgrime -seja em relação aos imigrantes ou aos pobres- a acusação de conspiração contra a ordem e, com isso, deprecia a democracia "real", o Estado de Direito, identificando-o com o "mundo corrupto da política".
A velha esquerda fundamentalista mantém-se -de diversas formas e em variados graus- defensora de um suposto reinício da história, que seria aberto pela destruição do Estado atual e sua conseqüente refundação revolucionária.
A direita, em diferentes graus, sofre a resistência da consagração -neste período histórico- da democracia política, acolhida, por diversos motivos, por uma amplíssima base social.
A esquerda "proletária" chama para a aridez de uma revolução sem sujeito, já que o mundo do trabalho está disperso em dezenas de frações com interesses paralelos. São desejos às vezes até opostos, divergentes, com subjetividades pouco dispostas à radicalização social, pois os exércitos excluídos, na informalidade e no crime, são fonte de temor para a sua sobrevivência duramente conquistada.
Esses pólos "extremos" não conseguiram despertar movimentos fortes, como fizeram o fascismo e o velho comunismo soviético ou as direitas populistas e a social-democracia.
Restou a atual interpenetração de posições, que gera alinhamentos estranhos: às vezes aparecem como aliadas, no cenário político, lideranças conservadoras e posições classicamente denominadas como de "extrema esquerda" ou ocorrem votações, nos Parlamentos regionais e nacional, que não raro unem direita liberal e posições de esquerda.
Outra proximidade é o uso indistinto do moralismo udenista pela direita conservadora e pela esquerda considerada "extremista". A primeira o faz para desmoralizar os políticos quando não é ela que está no governo, pois a rejeição à política atrai o voto alienado para a oposição. A segunda, porque se considera redentora messiânica da moral pública, que só existirá -ditada pelo seu partido- fora dos quadros da "democracia burguesa".
Essa dispersão-confusão entre os valores políticos da esquerda e da direita não significa que eles se integraram, mas indica que -no momento em que o mundo da segunda Revolução Industrial ainda não morreu e o novo mundo global da "sociedade da informática" ainda não amadureceu- as posições ainda não se renovaram para demarcar os seus opostos.
Provisoriamente, nós -da esquerda- devemos ter claro que é preciso avançar, com uma paciência que não dispensa a ousadia, nas políticas de inclusão massiva das pessoas na nova sociedade de classes em formação.
Inclusão jurídica, política e econômica para que elas vejam o mundo de dentro de uma nova cultura e de uma nova vida moral, para que a utopia da esquerda possa se apresentar de novo como portadora do progresso humanizado e da esperança de igualdade.

TARSO FERNANDO HERZ GENRO , 59, advogado, é ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República. Foi ministro da Educação (2004-2005), ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (2003-2004) e prefeito de Porto Alegre pelo PT (1993-96 e 2001-02). É autor de "Utopia Possível" (Artes e Ofícios), entre outros livros.


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