São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Quem muito se abaixa...

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO e FÁBIO KONDER COMPARATO

Carro oficial é carro do governo. Verbas oficiais são verbas do governo. "Diário Oficial" é jornal do governo. Banco oficial é banco do governo. Todos sabem disso, menos o próprio governo.
A Constituição Federal determina, em seu art. 164, parágrafo 3º, que "as disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central, as dos Estados, do Distrito Federal, dos municípios e dos órgãos ou entidades do poder público e das empresas por eles controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei". Tais casos, como diria o Conselheiro Acácio, são de exceção, não de regra. Por isso mesmo dependem de lei votada pelo Congresso Nacional.
A razão disso é óbvia: recursos públicos são recursos do povo ("res publica, res populi" -coisa pública, coisa do povo-, dizia Cícero). Numa república digna desse nome, tais recursos não podem ser geridos senão pelo governo, que existe para representar o povo e administrar os seus bens.
No Brasil, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e seus delegados no governo federal não cessam de repetir, há muitos servidores públicos. Em alguns Estados e municípios, as somas pecuniárias depositadas todo mês para pagá-los é tão grande que absorvem mais de 60% do respectivo Orçamento. Essa apreciável massa monetária, transformada em depósitos bancários, gera pingues retornos às instituições financeiras que os recebem.
Ora, as instituições financeiras depositárias estão sendo sistematicamente repassadas a grupos privados, em sua maior parte estrangeiros.


Recursos públicos são recursos do povo; em uma república digna desse nome, eles devem ser geridos pelo governo
Como se vê, na condução dos negócios de privatização, o Executivo deu-se conta, tardiamente, de que se havia esquecido do pormenor constante do art. 164, parágrafo 3º, da Constituição. Que fazer? Ora, nada mais fácil: bastava editar uma medida provisória e corrigir o erro constitucional.
Foi o que o Presidente da República (da República?) fez, ao assinar a de nº 2.139-62, em 26 de janeiro passado. Aí ficou dito que "as disponibilidades de caixa dos Estados, do Distrito Federal, dos municípios e dos órgãos ou das entidades do poder público e das empresas por eles controladas poderão ser depositadas em instituições financeiras submetidas a processo de privatização ou na instituição financeira adquirente do seu controle acionário, até o final do exercício de 2010".
A novidade do procedimento, escusa dizê-lo, não está no fato de uma medida provisória alterar a Constituição. Ninguém mais presta atenção a esse detalhe, que passou a fazer parte dos nossos costumes políticos. A novidade foi que uma medida provisória, assinada em 26 de janeiro, revogou outra, assinada não anteriormente, mas na mesma data: o artigo 32, da medida provisória nº 2.139-62, revogou expressamente a de nº 2.139-61, ambas datadas de 26 de janeiro de 2001.
Só que a primeira foi publicada em 27 de janeiro e a segunda apareceu no "Diário Oficial" dois dias depois (é verdade que o dia 28 fora um domingo).
Como é possível isso? Então, o presidente (do quê mesmo?) é capaz de revogar um ato normativo que não chegou a ser publicado oficialmente? Toma uma decisão pela manhã, muda de idéia à tarde e já não pode impedir o funcionamento inexorável da engrenagem burocrática que conduz o texto à imprensa oficial?
A verdade é mais escabrosa. As duas medidas provisórias são idênticas, salvo numa disposição: exatamente a que dá a bancos particulares a lucrativa (e inconstitucional) disponibilidade de recursos públicos.
Não é difícil descobrir quem está por trás do episódio. Logo após a privatização do Banespa, o Tribunal de Justiça de São Paulo baixou o provimento nº 748/ 2000, vedando a realização de novos depósitos judiciais junto àquele banco e determinando que tais depósitos fossem efetuados doravante na caixa econômica do Estado. É claro que o Banco Santander, novo controlador do Banespa, não gostou nem um pouco da providência administrativa, que certamente levaria o Executivo a fazer o mesmo. Reclamou em Brasília, alegando que havia comprado gato por lebre. O governo da República (?), sempre obsequioso diante do capital estrangeiro, apressou-se em emendar a Constituição no prazo recorde de menos de 24 horas.
A moral da história pode ser expressa cruamente pelo ditado que costumávamos ouvir de nossos avós: "Quem muito se abaixa, o rabo lhe aparece".


Celso Antônio Bandeira de Mello, 63, é advogado e professor titular de direito administrativo da Faculdade de Direito da PUC-SP. Fábio Konder Comparato, 63, é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor "honoris causa" da Faculdade de Direito de Coimbra.




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