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São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

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Na "encenação", o sangue é de verdade

TÚLIO KAHN

Por que a letalidade policial cresceu com relação a 2005? Creio não ser preciso título de doutor para compreender a especificidade de 2006

EM ARTIGO publicado nesta Folha em 7/2, Paulo de Mesquita Neto reclama que falta transparência e sobra encenação na Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Essa alegada encenação resultou na queda de 57,6% na taxa de homicídios, 57,4% nos latrocínios, 43,3% na tentativa de homicídio, 42,8% no roubo de veículos, 26,8% nos estupros, 19,1% no furto de veículos e 12,8% nos roubos outros entre 1999 e 2006. Esses resultados se alcançam com muito suor e seriedade, e não com pirotecnia.
Com relação especificamente à crítica de falta de transparência nas ocorrências envolvendo policiais, cabe lembrar que, em dezembro de 2000, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) estabeleceu, pela resolução nš 516, que, mensalmente, seriam publicadas no "Diário Oficial" as ocorrências envolvendo mortes e lesões envolvendo policiais como vítimas ou como autores.
O objetivo foi dar "transparência às ações e aos resultados e garantir, por parte da população e dos organismos de defesa da cidadania, fiscalização da atuação das polícias e de suas corregedorias", bem como dar maior "precisão, clareza e transparência às estatísticas de ocorrências envolvendo policiais". Pioneira, ela serviu de modelo para outros Estados e para a Secretaria Nacional de Segurança Pública.
Em São Paulo, é possível acompanhar todo mês, desde 2001, por polícia e por área, todos os casos classificados como resistência seguida de morte, homicídio doloso e culposo ou lesão corporal dolosa e culposa cometidos por policiais em serviço ou fora dele. A publicação traz ainda o número de policiais mortos e feridos e de procedimentos instaurados pelas polícias -inquéritos, sindicâncias, processos disciplinares- resultantes desses casos.
Justamente porque a SSP disponibiliza essas informações, foi possível a Paulo de Mesquita Neto chegar ao número bombástico de 708 pessoas mortas por policiais em 2006, somando as ocorrências em serviço e em folga, inclusive os homicídios culposos -acidentes de trânsito, reação a roubos e crimes passionais!
Não por orientação da SSP, parte da imprensa, por questão de bom senso, simplesmente optou por divulgar apenas as ocorrências de resistência seguida de morte em serviço, por julgar que este, sim, é o dado socialmente relevante.
A soma total, inclusive, beneficiaria a Secretaria da Segurança Pública, pois o aumento no ano seria de 51%, e não de 77%, como foi divulgado. Não se trata, portanto, de falta de transparência, mas de explicitar os critérios que cada um está utilizando -e, claramente, a imprensa tem razão.
Também em dezembro de 2000, a resolução nš 526 criou a Comissão Especial para Redução da Letalidade em Ações Envolvendo Policiais, composta por representantes do Gabinete da Secretaria da Segurança Pública, da Polícia Militar, da Polícia Civil, da Superintendência da Polícia Técnico-Científica, da Ouvidoria da Polícia, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e do Instituto São Paulo contra a Violência.
São atribuições da comissão identificar os fatores que aumentam o risco de letalidade e propor a adoção de medidas para a sua redução, bem como o aprimoramento das estruturas investigativas. Ela tem se reunido regularmente, com a prestimosa colaboração de Paulo de Mesquita Neto.
A próxima reunião está agendada para amanhã, com o propósito de analisar os casos ocorridos em 2006 e as perspectivas para 2007. Curioso que, durante as várias reuniões em que esteve presente, o autor jamais tenha reclamado da falta de transparência.
Por que a letalidade policial cresceu com relação a 2005? Creio que não é preciso título de doutor para compreender a especificidade do contexto de 2006, em que os ataques das facções criminosas resultaram em 63 policiais mortos ou feridos, 200 unidades policiais atingidas e 91 residências de policiais atacadas por tiros e bombas, sem mencionar os 355 ônibus incendiados e os ataques sofridos por outras instituições, totalizando 986 incidentes.
Mesmo dentro desse contexto atípico, o espantoso não é o aumento com relação ao ano anterior, mas que, ainda assim, o número total de mortos em 2006 ficou abaixo do de 2003. Esse momento atípico é o que obviamente explica o aumento da letalidade simultaneamente à queda da criminalidade violenta no ano passado, e quem não tem discernimento para apontar isso está fadado a produzir análises baseadas em ideologias e no senso comum.


TÚLIO KAHN, 41, sociólogo, doutor em ciência política pela USP, é coordenador de Análise de Planejamento da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Foi diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (2002/2003). É autor, entre outras obras, de "Nova e Velha Polícia".

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