São Paulo, quarta-feira, 14 de março de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O projeto da recessão perpétua

MARCELO O. DANTAS

O Estado brasileiro tornou-se um instrumento de extração de excedente dos agentes produtivos e transferência dessa riqueza aos rentistas

MAIS UMA reunião do Copom.
Novamente os juros nominais caem menos que o esperado. Descontada a inflação, o Brasil continua a ostentar o título de campeão mundial da rentabilidade improdutiva. Enquanto países como México e África do Sul operam com taxas reais inferiores a 3%, nossas autoridades monetárias sustentam estarmos no melhor dos mundos possíveis com uma taxa de 8,6%. Dias mais tarde, os jornais noticiam que a produção industrial caiu e os lucros dos bancos bateram recordes. A conclusão é inevitável. O Brasil se tornou um país de rentistas. Quem ainda recorda os ensinamentos do velho Keynes sabe a arapuca em que nos metemos.
A origem do mal está no longínquo ano de 1981. Por quase cinco décadas, o Brasil crescera rápido, operando com taxas de juros reais negativas.
Ganhava-se dinheiro com trabalho e investimentos produtivos. O Brasil era um país mais avançado que a Coréia do Sul. Fazia-se muita bobagem também. Gastava-se a rodo no serviço público, tomava-se dívida sem pensar no amanhã e ainda havia os megalômanos que torravam bilhões em projetos como o acordo nuclear. Acabamos surpreendidos pela segunda crise do petróleo, seguida de uma radical elevação dos juros internacionais. Foi o fim da festa.
Diante da aceleração inflacionária, o então ministro do Planejamento abandonou suas políticas heterodoxas e rendeu-se ao monetarismo. A elevação da taxa de juros e a contração da base monetária foram assinaladas como principais instrumentos de combate à inflação. De imediato, o país caiu numa aguda recessão.
Na esperança de justificar o estrago, as autoridades monetárias "juraram" que o amargo remédio seria aplicado apenas no curto prazo, de modo a promover o necessário ajuste na economia. Não foi o que aconteceu. À exceção da desastrada experiência do Plano Cruzado, os últimos 26 anos estiveram marcados por sucessivas renovações das mesmas promessas ortodoxas. Mesmo após a estabilização da moeda, o curto prazo monetarista (rebatizado "neoliberal") se eternizou. Nenhuma política mais ousada de reformas estruturais, racionalização da máquina estatal e incentivo da produtividade foi tentada.
FHC teve a chance, mas preferiu assegurar sua reeleição. Acabou surpreendido por uma sucessão de crises internacionais. A taxa de juros manteve-se na estratosfera, os recursos arrecadados com a venda das estatais foram "privatizados" e o espetáculo do crescimento frustrou-se.
Em lugar de reverem suas políticas, os economistas oficiais concluíram que a solução estava em doses ainda mais amargas de ortodoxia. Surgiu a idéia dos superávits primários, que durariam só três anos e não ultrapassariam a marca dos 3% do PIB. Mais uma vez, não foi o que aconteceu.
Os mecanismos da estagnação parecem implantados no inconsciente dos tecnocratas. Quando a demanda se aquece e a inflação ameaça subir, imediatamente os juros disparam, sem guardar relação com o processo natural de negociação da dívida pública. Do mesmo modo, ao menor sinal de agitação dos mercados, os juros sobem para salvar a pátria. Como resultado, o câmbio se valoriza, o crescimento cai e a economia vai se ajustando a um equilíbrio-com-desemprego.
O mais interessante é que os juros sobem com rapidez mercurial. Sua queda, no entanto, responde aos ritmos do tempo geológico. Como resultado, a parte do leão de tudo o que se extorque do contribuinte é imediatamente repassada aos agentes financeiros. O Estado brasileiro, com seu fisco voraz e a bola de neve da dívida pública, tornou-se um instrumento de extração de excedente dos agentes produtivos e transferência dessa riqueza para as camadas rentistas. Tal como nos tempos de Tiradentes, vivemos numa permanente derrama.
Após 26 anos de políticas ortodoxas, nos deparamos com seu legado devastador: a queda brutal do investimento produtivo e o apequenamento do mercado interno.
O Brasil sucateou sua infra-estrutura, vandalizou a indústria e, em lugar de expandir a classe média, tratou de extirpá-la. Acabou ficando para trás e inviabilizando seu próprio crescimento. Quando o mundo inteiro avança, nos arrastamos na rabeira.
Quando o mundo se retrai, mergulhamos na depressão. Não fosse pela pujança do setor agrário, teríamos virado um país africano. Curiosamente, nossas elites continuam a defender esse arranjo irracional. Por quê? Porque se tornaram rentistas e dependem dos juros elevados para preservarem sua riqueza e status social. Somos hoje prisioneiros do que Kant talvez chamasse de um projeto da recessão perpétua.


MARCELO OTÁVIO DANTAS LOURES DA COSTA, 43, formado em ciências econômicas pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é escritor, roteirista e diplomata de carreira. É chefe da Divisão de Assuntos Multilaterais Culturais do Ministério das Relações Exteriores.

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