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O frade espanhol
CARLOS HEITOR CONY
RIO DE JANEIRO - ""Está bem, está bem, você tem razão. Sou eu quem
não presto. Nunca disse que prestava.
Nem para você, nem para ninguém.
De mim, sempre se podem esperar as
piores coisas..."
Aí a moça o interrompeu. Ela estava calada, parecia concordar com ele,
havia muito que não concordavam
em nada, sim, ele não prestava, mas
quando falou que dele se podiam esperar as piores coisas, ela não aguentou:
"Lá vem você com esse velho disco...
o frade espanhol do qual se podem
esperar as piores coisas... Você nem é
espanhol nem é frade!"
Ficou desarmado. Era um negócio
antigo, citar um frade espanhol desconhecido, mais metáfora que personagem. Nos romances de capa-e-espada, quando um deles aparece, dele
realmente se devem esperar as piores
coisas.
Poderia mudar o disco: nos filmes
de faroeste, sempre se esperam as
piores coisas do cara que toma conta
da diligência que traz as cartas. Nos
filmes policiais -é óbvio-, o mordomo sempre é culpado de alguma
coisa. Nem o bandido nem o mordomo têm charme. O frade tem.
A moça falara e ela prometera que,
acontecesse o que acontecesse, jamais lhe dirigiria a palavra. No início, ela não percebeu que quebrara a
promessa. Quando descobriu que
afinal falara alguma coisa, sentiu
que a derrota estava próxima.
Evidente que não falaria mais.
Nem ele. Tinham tantos códigos em
comum que nem precisavam de mais
nada. Ele segurou a mão dela, estava
fria. Sempre ficava com a mão fria
quando estava com vontade. E, agora, tinha vontade e tinha urgência.
Ele não prestava mesmo. Aquela
história do frade espanhol era velha,
usara-a diversas vezes em diversas
outras situações, ela nem era nascida
e ele já explorava o frade espanhol.
Sempre funcionava.
E o frade espanhol mais uma vez
lhe deu a melhor coisa.
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