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São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula e a fatura do futuro

CANDIDO MENDES

Um dólar abaixo de R$ 3 e um quórum de 442 deputados para abrir as reformas no Congresso não deixam discrepâncias sobre o quase consenso na avaliação convencional do êxito de Lula nos 150 dias iniciais. Fica impossível, nesse sucesso crescente, organizar-se a oposição prometida, não obstante o voluntariado dos sem-palácio do PFL, à frente o senador Bornhausen.
Não há contraministério para fazer frente ao governo, tal como, anteriormente, se aparelhara o PT para a mesma tarefa, diante do tucanato. Tento tem o delfim do PSDB, Aécio Neves, para pensar a tarefa nas inflexões que, a largo prazo, assuma a consolidação de uma social-democracia no país. De saída, o trilho é o mesmo, pois que a gestão Palocci eliminou todos os chavões do temor a Lula, no querer mudar "tudo que está aí" e vir o governo a espantar os que entenderam a longa marcha para o Planalto como a instalação no poder de uma utopia incontaminável. É tão amplo o apoio a Lula que provoca a coceira para a execução sumária dos dissidentes, dentro do próprio partido. São tão poucos os rebeldes que vale a tentação do fuzilamento ideológico. É quando prospera o argumento da punição exemplar, fugindo-se à convivência contumaz de todas as facções partidárias, no que o PT deu o exemplo ímpar, na maturação democrática do país.
O que se faz na Fazenda reflete lá fora o absoluto estreitamento das alternativas, em que uma economia como a nossa se insere na globalização, ou no que sejam as inflexibilidades do mercado. Mas essas só se agudizam, numa gula maior de exigências, tanto qualquer neófito do clube vença as primeiras provas, como fizeram a dupla Palocci-Meirelles, cumprindo o script previsto da transição e ganhando uma credibilidade que não é de uma reviravolta continuísta, mas dos riscos calculados para a saída, a seu tempo, do estrito neoliberalismo, como fatura do futuro no país.
Avança-se entre o aplauso indiscutível do Banco Mundial e as ressalvas de outros potentados. As performances respondem pelo passo adiante, cada vez mais nosso, não o das reformas, que chamam reformas, na boca torta de um mesmo receituário e desfecho como quer o FMI. A rima final da nossa boa conduta não é a de dizer sim, e de vez, à Alca. O essencial é que Lula, à proporção que ganhou o novo capital de respeito e aquiescência lá fora, ponha em jogo já para onde vai o seu modelo, com a clareza da negociação sem trégua.
A lua-de-mel, que continua, está toda apoiada no trunfo que é o do próprio presidente: a disposição gigantesca para o corpo-a-corpo dos debates e o enfrentamento dentro da suas próprias hostes, onde, mais que nunca, está presente o líder sindical e o olho-no-olho, no minueto político dificílimo, de transigir para ir adiante. Não se descura da urgência, e o Fome Zero é assistencialismo, sim, não importa a ortodoxia da crítica diante da leitura objetiva da prioridade e da trama das promessas, que permanece ardendo na cabeça do presidente. Há dificuldade, sim, em organizá-lo. Mas os ajustes se fazem a caminho e não se oferece uma casuística de racionalidades ao ímpeto da exigência evangélica do dar de comer a quem tem fome, frente à impaciência da marginalidade-monstro do país.


É tão amplo o apoio a Lula que provoca a coceira para a execução sumária dos dissidentes, dentro do próprio partido


Lula continua o seu fiador, num crédito que assina sozinho, frente aos sem-terra ou aos sem-teto, tal como pode, na sua própria grei, e frente às CUTs, separar o joio do trigo e distinguir a reivindicação corporativa enrustida da mobilidade emergente e seus reclamos. Quebrou o impasse da reforma previdenciária, enquanto enfrentou os privilégios tradicionais de juízes, militares e castas burocráticas. Mais ainda, ao conceder menos de 2% ao aumento ao funcionalismo, não hesitou em mostrar que o salariado do Estado, no país de sempre, ainda confrontava a enorme massa dos trabalhadores brasileiros. Há um tapa-boca no discurso do presidente, para que, de fato, fale a verdadeira miséria.
Sem medo da discussão, Lula não só se antecipou na lide nacional, mas forjou uma nova e inédita política dos governadores, convocando-os para as reformas básicas, num sistema único de pressão sobre o Congresso, muito mais sensível, às vezes, ao comando regional que aos protocolos do Planalto. Claro, reforma na Previdência ou na tributária, muitas vezes contornou-se o nó górdio. Mas, destrancado o debate, muda a perspectiva do avanço e se miniaturiza o que agora parece intransponível.
Sobretudo, e contra os críticos do desossamento da proposta petista, aí está imediatamente a marca da decisão no plano dos modelos, imposta à retomada do papel do Estado, e da rigorosa inflexão imposta às privatizações e sua bacia das almas neoliberal. Não só se susta a continuação dessa política no campo da geração de energia, mas, pela decisão clara de Dilma Roussef e de José Dirceu, as empresas privadas sucessoras são exigidas ao pago das suas dívidas e ao efetivo poder de controle regulamentar. Nem se excluem, na sua sequência, o desmonte das privatizações e o retorno do Estado à direta interferência no jogo econômico.
País continental voltado para si mesmo, não nos damos conta dos trunfos externos já logrados no novo governo, onde pode ir além da credibilidade ganha, de dentro do clube dos bem-nascidos do Primeiro Mundo. Já na madrugada da posse, conseguiu manter o governo da Venezuela, em ação decisiva de suprimento de petróleo, desbaratando a escalada golpista. Mas é quanto ao segundo grande conviva do 1º de janeiro que, hoje, Lula pode exercer tarefa decisiva de conciliação, entre a velhice de Castro e a plataforma de defesa dos direitos humanos, que precisa mais do que do petitório internacional para se fazer ouvir num país cada vez mais cercado pela maré republicana nos EUA.
No mundo que não volta mais ao Conselho de Segurança da ONU, não é pela busca de um lugar permanente naquele cenáculo violentado que se marca a ratificação dos triunfos inéditos em que o Brasil de agora pode apontar para a alternativa. Nosso poder vai ao plenário das Nações Unidas, na autoridade crescente em que temperamos as receitas e profecias dos donos do mundo. Nossa fatura não é a do populismo, dos golpes consentidos, nem da democracia como subproduto da atual receita de Bagdá. Estamos dando conta do óbvio para ter direito à diferença.

Candido Mendes, 74, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco e membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.


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