São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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O país em jogo

CARLOS BEZERRA JÚNIOR


Quem em sã consciência consegue ver a fila na porta dos bingos e continuar acreditando que as pessoas estão ali só para se divertir?


SEMPRE QUE participo de debates sobre assuntos como redução da maioridade penal, desarmamento e legalização dos bingos, me pergunto: que país queremos?
Ao ler artigo de Marco Vinício Petrelluzzi, ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, publicado no dia 4 neste espaço, pensei sobre o quanto as crises sociais que enfrentamos têm estreitado a nossa visão em vez de nos dar oportunidade para tornarmos o país mais justo.
Há dois anos, a Câmara de São Paulo aprovou um projeto de minha autoria, sancionado pelo então prefeito José Serra, que obrigava as casas de bingo a colocar placas alertando sobre o risco do vício no jogo.
Na época, os donos de bingos alardearam o benefício da iniciativa, lépidos em legalizar na marra o negócio milionário. A verdade é que aquilo era tudo o que eu poderia fazer como vereador e era também uma tentativa de puxar a discussão, urgente, para o campo certo, o da saúde pública.
"A prática do jogo pode viciar e provocar problemas emocionais e financeiros", diz a frase na placa obrigatória. O bingo como opção de lazer não é o que há aí. A divertida tômbola é o que se praticava em quermesses. Nos megacassinos espalhados pelo país como praga, o que se vê é uma máquina feita -da decoração ao software que escolhe os números- para criar dependência inferior só à do cigarro.
Instituições como a Universidade Federal de São Paulo e a USP criaram laboratórios para atender a população viciada. Da segunda, pesquisa do Ambulatório do Jogo constata que a síndrome de abstinência do jogador chega a ser pior que a do alcoólatra.
Foi nesses locais e na organização Jogadores Anônimos que aprendi que jogar na loteria é uma coisa, jogar em bingo e nas máquinas de caça-níquel, outra completamente diferente.
Quando a resposta da aposta é rápida, como no segundo caso, a dependência é mais fácil de ser desenvolvida.
Pesquisas sobre como ganhar e perder dinheiro mexe com nosso humor não param de surgir. Recentemente, cientistas da University College (Londres) constataram que, ao perder dinheiro, ativamos a mesma região do cérebro usada para identificar medo e dor. Imaginem, então, o que se produz na cabeça do jogador de caça-níqueis. Para os JA, essas máquinas são o crack da jogatina. De cada dez pessoas que procuram apoio na entidade, quatro são dependentes delas.
Fui testemunha da destruição que o bingo provoca. Há estabelecimentos no qual o jogador entra de carro e do qual sai a pé. Conheci um senhor que, não bastasse perder o carro, jogou o dinheiro que usaria para pagar a condução. Outros chegam a roubar parentes para jogar. Há algum tempo, os jornais noticiaram a história da esposa de um decasségui do Paraná que jogava todo o dinheiro que o marido enviava do Japão. Na semana em que ele retornaria ao Brasil, ela se matou.
Ao observar atentamente os bingos da cidade, vemos que quem está ali é o cidadão de classe média baixa que aposta nas máquinas para realizar sonhos que o salário não realiza. Há também muitos aposentados.
Quem em sã consciência consegue ver a fila na porta de alguns estabelecimentos, no início da tarde de um dia de semana, e continuar acreditando que aquelas pessoas estão ali apenas para se divertir?
Só os proprietários de bingos, que usam argumentos espúrios para manter os lucros -fortuna que serve para comprar sentenças judiciais, como revelaram as operações da Polícia Federal Hurricane e Têmis, e que financiam campanhas como revelou o caso Waldomiro Diniz. Alguma autoridade pública acredita, realmente, que vamos manter sob controle os bingos do país ante esse currículo?
Ah, mas existe Las Vegas, um conjunto de cassinos freqüentados por turistas cravado no meio do deserto justamente para isolar a jogatina do dia-a-dia. Mas, mesmo que os EUA, onde parte considerável da população tem dinheiro para gastar e aplicar na Bolsa, por exemplo, fossem habitados por viciados em jogo, deveríamos imitá-los por quê? Há quem use a desculpa de que bingos geram emprego.
O tráfico de drogas também gera. Mas o pior argumento é o da corrupção que vem da repressão. Tipo: proibir é pior. Desse prisma, os juízes acusados de vender sentenças são, na verdade, vítimas de um sistema cruel.
Já liberamos as armas, estamos em vias de reduzir a maioridade penal e corremos o risco de legalizar os bingos. O que de melhor ainda temos para fazer por essa população que precisa de segurança, sim, mas necessita também parar de ser enganada por máquinas e por homens? Tivesse o tráfico de drogas lobby tão eficiente, o crack estaria legalizado.

CARLOS BEZERRA JÚNIOR , 39, médico, é vereador e líder do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo.

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