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São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2003

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BORIS FAUSTO

As pedras no caminho

Pego carona , até parafraseando o título, em um pequeno, mas incisivo, artigo de Gustavo Patú, da Sucursal de Brasília desta Folha ("No meio do caminho havia dois Poderes", Brasil, 10/7), analisando o sentido da contramarcha do governo, cujo alcance ainda não se conhece, no caso das reformas previdenciária e tributária. Como diz o jornalista, caiu por terra uma tese muito propagandeada pelo governo: a de que as negociações prévias "com a sociedade" e com os governadores poderia viabilizar a aprovação rápida e integral das reformas.
Parto desse ponto para indagar qual é a raiz dessa percepção governamental. No que diz respeito ao entendimento com a "sociedade", o governo parece ter acreditado que o CDES (Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) poderia fazer as vezes da sociedade, incorporando seus segmentos mais representativos. Essa crença tem muito a ver com a experiência sindical do presidente e de integrantes de sua equipe, ainda que o CDES não possa ser visto como uma "junta de conciliação". O problema é que a sociedade é muito mais complexa do que um órgão dessa natureza, com poderes essencialmente consultivos cujas deliberações pouco peso parecem ter.
Na postergação do Judiciário e do Congresso, notadamente no caso deste último, o presidente Luiz Inácio refletiu um traço profundo de nossa cultura política, com ressonâncias autoritárias, que vislumbra no Executivo a instituição capaz de dar rumos ao país e, no Congresso, a instância causadora de embaraços.
Assim pensaram, apesar de suas concepções diversas, o marechal Floriano, que se incomodava também com a liberdade de imprensa, e Getúlio Vargas, para quem a Constituição de 1934 representava um estorvo. Assim pensaram muitos mais, como o presidente Campos Sales, filho dileto da Velha República que se referia ao Executivo como "o poder por excelência" e instituiu a política dos governadores, não sem paralelo, guardadas todas as diferenças, com os dias que correm.
Não se trata aqui de defender sem ressalvas o Judiciário e o Congresso, cujos males são notórios e denunciados pela mídia, todos os dias. Mas isso não pode levar a desconhecer o papel desempenhado por essas instituições, seja, no primeiro caso, no sentido da interpretação e da aplicação das leis; seja, no segundo caso, no sentido de legislar, a partir de um mandato conferido pela cidadania. Do modelo à prática vai uma distância -às vezes uma gritante distância-, mas é esse o desafio a ser superado, sem pretender chegar a uma perfeita identificação entre o modelo e a realidade.
É desnorteante para o país que o presidente um dia proclame que só Deus poderá obstaculizar as reformas, numa clara alusão ao Congresso e ao Judiciário, sem falar nos servidores públicos, e depois dê marcha a ré em suas palavras. Como isso vem acontecendo muitas vezes, não seria demais lembrar que as bravatas, justificadas pelo presidente -remetendo ao passado-, pelo suposto papel de oposição, continuam infelizmente a integrar seu discurso nos dias de hoje.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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