São Paulo, quarta-feira, 14 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Excesso de medidas provisórias

RAMEZ TEBET

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz críticas ao Congresso Nacional por protelar decisões sobre iniciativas do Poder Executivo, creditando a lentidão ao jogo eleitoral. Trata-se de uma crítica injusta. Diferentemente do que diz o presidente, o Congresso tem agido de maneira pressurosa, atendendo eficazmente aos pleitos provenientes do Planalto. Não pode é se transformar em Poder convalidante de todas as decisões do Executivo, sob pena de ver esmaecida sua missão constitucional.
Ocorre que há matérias muito complexas, como a Lei de Falências, que o Senado acaba de aprovar, ou a questão das Parcerias Público-Privadas, fundamental para atrair investimentos estrangeiros, cuja decisão passa por criteriosa avaliação de efeitos sobre a estrutura econômica do país. De outro lado, se algum atraso há, o próprio governo é o responsável, ao fazer protelar o processo de votação por conta do excesso de medidas provisórias que encaminha ao Parlamento e que não podem ser aprovadas a toque de caixa. São elas que acabam obstruindo a pauta da Câmara.


O Congresso tem agido de maneira pressurosa, atendendo eficazmente aos pleitos provenientes do Planalto


O art. 62 da Constituição Federal diz que, "em caso de relevância e urgência", o presidente da República poderá adotar medidas provisórias com força de lei, submetendo-as de imediato ao Congresso. Mesmo com a proibição da reedição indefinida de medidas provisórias -objeto da emenda nš 32, de setembro de 2001, pela qual as medidas provisórias passam a perder eficácia se, no prazo de 60 dias, prorrogável uma vez por igual período, não forem convertidas em lei-, o problema é que esse instrumento está sendo editado de maneira excessiva, banalizando o conceito de excepcionalidade que o justificaria.
Causa estranheza o fato de que o preceito constitucional, mesmo sendo um dos mais criticados pelos congressistas, como execrado foi pelo nosso atual presidente Lula nos tempos em que batalhava nas frentes oposicionistas, continua intocável e utilizado de forma até mais intensa que no governo anterior.
Isso nos leva a concluir que a situação do Estado brasileiro é crítica, a ponto de carecer de utilização continuada, pelo Executivo, de medidas excepcionais para garantir a governabilidade, ou o processo ocorre porque instituições e agentes públicos costumam transformar fatores provisórios em elementos permanentes, sendo este um dos traços culturais mais comuns do "ethos" nacional.
É verdade que, em determinados momentos, medidas têm sido adotadas dentro do espírito do art. 62, mas imaginar que os milhares de medidas provisórias expedidas desde 1988 atendem ao clamor da urgência é discurso que não se sustenta. Preferimos acreditar na hipótese de que o presidencialismo de caráter imperial que temos avança na seara legislativa, gerando o monstrengo do parlamentarismo às avessas, ou seja, o Executivo operando as próprias leis que cria. O recurso à legislação extraordinária acaba sendo tão banalizado que o Parlamento ganha status de órgão auxiliar do Executivo.
O Congresso tem parcela de responsabilidade nessa questão. Para evitar abusos, precisa avaliar se a medida provisória atende o crivo constitucional, podendo ainda rejeitar o mérito, se for o caso, ou emendá-la. Trata-se, porém, de possibilidade remota alterar o curso de uma medida provisória, dado que a força do Executivo sobre o Legislativo impõe a pauta de prioridades. Apesar das contrapressões feitas por forças oposicionistas tanto no Senado quanto na Câmara, o Poder Executivo tem levado a cabo sua determinação governativa, aprovando matérias de seu interesse e passando o rolo compressor, quando isso se faz necessário, como ocorreu no episódio de aprovação do salário mínimo de R$ 260. O presidente acaba definindo a agenda legislativa, visões e temas a serem contemplados. Nesse caso, pouco funciona o sistema de freios e contrapesos com que, teoricamente, se identifica o poder do Congresso.
Há de admitir que a força do Executivo é conseqüência direta de sua capacidade de fortalecer o presidencialismo de coalizão. O governo Collor fraquejou nesse sentido, ao desconsiderar o peso do Congresso Nacional. Ao tomar posse, editou 22 medidas provisórias, mas teve de negociar a duras penas com as casas congressuais para aprovar seu plano. A tênue articulação com o Congresso acabou esfacelando seu poder de fogo nos embates finais nas proximidades do impeachment.
No governo Itamar e nos dois mandatos de Fernando Henrique, ampla coalizão foi firmada, assegurando a base necessária para garantir medidas do interesse do Executivo. O conforto do governo Lula para aprovar medidas provisórias, na moldura da plena vigência da emenda 32, será balizado pela boa avaliação da administração federal. As folgadas maiorias do Executivo na Câmara e no Senado tendem a diminuir ao sabor da má performance governamental.
Se continuar aceitando a excessiva quantidade de medidas provisórias, o Parlamento estará abdicando de parte de sua missão constitucional, passando ainda a imagem de Poder auxiliar do Executivo. Essa é a razão pela qual conclamamos as lideranças políticas para um exame profundo da situação das medidas provisórias. A excessiva edição delas tem um alto custo político para a nossa democracia.

Ramez Tebet, 67, advogado, senador pelo PMDB-MS, é o presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Presidiu a Casa de 2001 a 2003.


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