São Paulo, quarta-feira, 14 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Galés e timoneiros

JORGE BOAVENTURA

Já em mais de uma ocasião tivemos a oportunidade de lembrar aos que nos lêem ou nos ouvem que as galeras romanas movidas a remos tinham bancos nos quais, agrilhoados a eles, galés acionavam aqueles, ao ritmo de um bumbo que, situado à sua retaguarda, determinava a velocidade do deslocamento da embarcação. Velocidade, porém, que a levava para destino que os remadores ignoravam completamente, de vez que os bancos em que estavam situavam-se no bojo da nau, de onde não lhes era possível ver o mundo exterior. Do referido destino só tinha, ou presumia ter, conhecimento quem empunhava a cana do leme, ou timão.
Pois bem; hoje queremos oferecer à consideração da inteligência e da consciência dos que nos honram com a sua leitura o fato de que tudo indica que, no mundo brutal e injusto em que vivemos, nós, homens comuns que compomos as massas, estamos na situação dos galés, imprimindo às nossas vidas ritmo que nos é imposto por quem não conhecemos, para fim que não discernimos com clareza, eis que o ritmo em questão é atordoantemente rápido, num consumismo -para os que podem consumir- transformado em ente autônomo, regulado por uma espécie de "deus", o mercado, a cujas exigências todos temos que obedecer. Mercado que não existiria, não fora o produto do trabalho de todos e que, por tal razão, deveria servir ao bem comum. Quantas vezes, porém, já terá o leitor tomado conhecimento de expressões como: "o mercado não aceita"; "temos que obedecer às leis do mercado"?
Quem é, porém, esse sr. mercado? Qual é o seu CPF? Qual é o seu endereço, postal ou eletrônico?


É ou não verdade que a corrupção, em todas as suas modalidades e aspectos, está tomando caráter epidêmico?


O absurdo a que nos estamos referindo seria facilmente identificado ou, melhor, não teria conseguido se instalar não fora a desvinculação do nosso processo civilizatório das raízes judaico-cristãs, de que ele proveio. Desvinculação que foi ensejada pelo art. 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, segundo o qual "a lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes". E, mais adiante: "Ninguém será obrigado a fazer, ou a deixar de fazer, alguma coisa, a não ser em virtude de lei".
Desprezava-se assim, deliberadamente, a advertência feita séculos antes por Cícero, que, em sua obra "De Legibus", assinalava: "Se admitirmos que todo o direito é o que se contém nas leis, estaremos conferindo aos legisladores a faculdade de transformar o bem em mal, a virtude em vício, a mentira em verdade e assim por diante".
O pagão Cícero, portanto, vislumbrava a necessidade da existência de um direito natural, fundado em valores de natureza imutável e permanente. No caso da civilização a que pertencemos, ora em agonia, os que são inferíveis da lei mosaica, que não foi ab-rogada por Cristo, que lhe deu nova interpretação. Desprezava-se, também, a sugestão feita por Nicolau de Cusa. Dele, que merece ser considerado o mais sólido fundador da ciência moderna e que, logo após o Concílio de Florença, realizado no século 15, recomendava que as sociedades se organizassem como Repúblicas, comprometidas com o bem comum, com o direito natural e com o progresso dos conhecimentos humanos.
O leitor, inteligente, já percebeu que a vinculação de tudo às leis elaboradas pelos que são guindados à posição de poder elaborá-las colocou-nos à mercê dos que dispõem dos meios necessários para compor a maioria dos mesmos.
Estamos, assim, chegando aos que, de fato, empunham a cana do leme. Quem são eles? São os engendradores do "deus" mercado, cuja suprema sacerdotisa é a forma degradada do ideal democrático a que chamam democracia e, por motivos que esperamos estejam se tornando óbvios perante a inteligência do leitor, tentam impor a todos, até pela força, se necessário for.
"Pelos frutos os conhecereis", porém, é a lição imortal cuja aplicação, no atual momento histórico, só comprova o que estamos oferecendo à análise do leitor. É ou não verdade que a corrupção, em todas as suas modalidades e aspectos, está tomando caráter epidêmico? É ou não verdade que os países ricos estão se tornando cada vez mais ricos e os países pobres cada vez mais pobres? Que os homens ricos estão se tornando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres? Que a violência, em todos os seus aspectos, cada dia aumenta mais?
Chegando ainda mais perto dos que empunham a cana do leme, o leitor sabe como é composto o famoso Fed? É composto por 12 bancos, todos particulares, formando uma junta presidida por alguém indicado pelo governo americano. No momento, a citada presidência é exercida pelo sr. Alan Greenspan, o qual tem sido nomeado e reconduzido por governos democratas e republicanos, o que justifica a dúvida sobre quem, de fato, nomeia quem...
Então, a economia do planeta é influenciada, poderosamente, pelos acionistas majoritários de 12 bancos -todos particulares, repisamos-, os quais imprimem quantos dólares queiram, havendo quem admita que os atualmente em circulação correspondem a valor 60 vezes maior do que a soma dos PIBs de todos os países do mundo. E isso é apenas a pontinha do véu.

Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.


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