São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 2006

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JOÃO SAYAD

Cinema nacional

UM AMIGO adora filmes argentinos. Mas detesta os filmes nacionais. O argentino "Kamchatka", por exemplo, trata dos anos duros da repressão argentina a partir das memórias de uma criança cujo pai foi preso e assassinado pelos militares. Fogem para uma casa abandonada na periferia de Buenos Aires, depois para a casa dos avós no interior. O pai deixa uma última lição -é preciso resistir. Repressão, seqüestros e tortura são narrados de forma delicada e sentimental.
Outro argentino, o "Nove Rainhas", denuncia a imoralidade da vida social argentina de forma leve e bem-humorada. Outros filmes argentinos falam das dificuldades financeiras do dono de pequeno restaurante tentando equilibrar suas finanças e salvar o negócio que acaba fracassando. "Herencia" é a história de um estudante alemão sem dinheiro em Buenos Aires à procura de uma namorada. Os filmes argentinos falam de repressão, crise econômica, a imoralidade da luta pela sobrevivência em uma economia estagnada. De uma forma suave e lírica.
O cinema brasileiro renasceu apesar dos golpes mortais do governo Collor. O número de títulos aumentou: "Cidade de Deus", "Ônibus 174", "Uma Guerra Particular". São filmes difíceis -violência, gente pobre, feia e desumanizada. "Ônibus 174" descreve o seqüestro do ônibus no Rio, mostrado na televisão, em que uma refém é assassinada e o seqüestrador, já preso e no camburão, morre sufocado pelos policiais. Não consegui assistir.
"Cronicamente Inviável" trata do mesmo tema do "Nove Rainhas", a decadência moral da classe média distraída com consumo de luxo, cruel e desumana com as empregadas e com os pobres que enfeiam a cidade. Diferentemente do argentino, é chocante, difícil de assistir, porque é ofensivo e sem rodeios. "Belíssima", a última novela da Globo, mostra a mesma coisa, a vitória do mal ou da corrupção sobre o bem.
Curioso, pois a música popular brasileira é leve e sentimental enquanto o tango, radical e trágico -e, no cinema, as características se invertem.
Talvez a ficção não consiga mesmo escapar da realidade. O mais imaginativo romancista apenas distorce, estica ou embaralha o real. Por outro lado, o documentário não consegue escapar da teoria. O mais rigoroso dos historiadores faz ficção ao relatar o Descobrimento do Brasil.
O cinema brasileiro não oferece entretenimento. É agressivo e incômodo. Deixou para trás os temas do tempo da ditadura e trata sem pudor da realidade do país. Uma visão nova? Anunciam uma nova época? O público é pequeno. A maioria ainda prefere entretenimento americano.
jsayad@attglobal.net


JOÃO SAYAD escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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