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JOÃO SAYAD
Cinema nacional
UM AMIGO adora filmes argentinos. Mas detesta os filmes nacionais. O argentino
"Kamchatka", por exemplo, trata
dos anos duros da repressão argentina a partir das memórias de uma
criança cujo pai foi preso e assassinado pelos militares. Fogem para
uma casa abandonada na periferia
de Buenos Aires, depois para a casa
dos avós no interior. O pai deixa
uma última lição -é preciso resistir. Repressão, seqüestros e tortura
são narrados de forma delicada e
sentimental.
Outro argentino, o "Nove Rainhas", denuncia a imoralidade da
vida social argentina de forma leve
e bem-humorada. Outros filmes
argentinos falam das dificuldades
financeiras do dono de pequeno
restaurante tentando equilibrar
suas finanças e salvar o negócio
que acaba fracassando. "Herencia"
é a história de um estudante alemão sem dinheiro em Buenos Aires à procura de uma namorada. Os
filmes argentinos falam de repressão, crise econômica, a imoralidade da luta pela sobrevivência em
uma economia estagnada. De uma
forma suave e lírica.
O cinema brasileiro renasceu
apesar dos golpes mortais do governo Collor. O número de títulos
aumentou: "Cidade de Deus",
"Ônibus 174", "Uma Guerra Particular". São filmes difíceis -violência, gente pobre, feia e desumanizada. "Ônibus 174" descreve o seqüestro do ônibus no Rio, mostrado na televisão, em que uma refém
é assassinada e o seqüestrador, já
preso e no camburão, morre sufocado pelos policiais. Não consegui
assistir.
"Cronicamente Inviável" trata
do mesmo tema do "Nove Rainhas", a decadência moral da classe
média distraída com consumo de
luxo, cruel e desumana com as empregadas e com os pobres que enfeiam a cidade. Diferentemente do
argentino, é chocante, difícil de assistir, porque é ofensivo e sem rodeios. "Belíssima", a última novela
da Globo, mostra a mesma coisa, a
vitória do mal ou da corrupção sobre o bem.
Curioso, pois a música popular
brasileira é leve e sentimental enquanto o tango, radical e trágico
-e, no cinema, as características se
invertem.
Talvez a ficção não consiga mesmo escapar da realidade. O mais
imaginativo romancista apenas
distorce, estica ou embaralha o
real. Por outro lado, o documentário não consegue escapar da teoria.
O mais rigoroso dos historiadores
faz ficção ao relatar o Descobrimento do Brasil.
O cinema brasileiro não oferece
entretenimento. É agressivo e incômodo. Deixou para trás os temas
do tempo da ditadura e trata sem
pudor da realidade do país. Uma visão nova? Anunciam uma nova
época? O público é pequeno. A
maioria ainda prefere entretenimento americano.
jsayad@attglobal.net
JOÃO SAYAD escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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