São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O uso do celular viva-voz no trânsito deve ser proibido?

NÃO

Use, mas não abuse

GILBERTO LEHFELD

Tudo parecia caminhar bem. A invasão dos celulares transformou beneficamente nossas vidas: maior flexibilidade, menos desencontros, negócios entabulados mais agilmente, maior proximidade com a família. E, rapidamente, chegou ao lugar mais propício ao seu uso, o automóvel -uma vez que as horas no trânsito nada acrescentam às pessoas, veio ajudar a transformar em produtivo um tempo perdido.
Mas a alegria não poderia ser completa. Começou a desconfiança de que a condução dos veículos tornava-se menos segura. Pesquisadores foram a campo verificar o que estava acontecendo e chegaram ao veredicto: o uso do celular com o veículo em movimento aumenta significativamente o risco de acidentes.
Uma pesquisa realizada em Toronto, publicada em 1997 no conceituado "The New England Journal of Medicine", colocou mais lenha na fogueira. Foram estudados 699 motoristas que tinham celulares e se envolveram em colisões com danos materiais consideráveis, mas sem vítimas. Foram cruzados os horários e a duração de 27 mil ligações feitas ou recebidas com os horários dos acidentes.
O estudo concluiu que o risco de colisão durante a ligação foi, em média, quatro vezes maior do que quando não em uso. Alguns países, inclusive o Brasil, proibiram sua utilização. A reação do público foi a esperada: acha perigoso, mas é contrário à restrição.
Julgava-se que o principal fator de insegurança fosse a difícil operação de discagem e a contínua ocupação de uma das mãos. Aí a solução estaria no uso dos chamados viva-voz. Mas os pesquisadores dizem que o principal fator é a distração induzida pela conversa.
A distração sempre foi a maior causa dos acidentes. Nosso cérebro tem uma capacidade limitada de processamento. Todos já vivenciamos a seguinte situação: ao entrar em uma via expressa conversando com o passageiro ao lado, toda nossa atenção passa a ser dirigida às cuidadosas manobras. Não conseguimos mais escutar o interlocutor. Terminada a manobra, retomamos a conversação. O que ocorre é uma sobrecarga de informações e o cérebro escolhe as que deixará de lado -as do passageiro.
Mas qual é a diferença entre falar com o passageiro e falar ao celular? É grande. O passageiro presencia a situação e entende que o motorista não pode lhe dar atenção no momento, e não o pressiona. No caso do celular, se o motorista não responder, será interrogado se está ouvindo, o que divide sua atenção.
O tipo de conversa influencia? Há divergências. Algumas pesquisas afirmam que o tipo da conversação não aumenta o risco. Outras dizem que há diferenças entre um "bate-papo" e uma discussão. Há o agravante do grau de intimidade e da hierarquia do interlocutor. Outro é o senso de urgência imposto pela "ditadura do telefone". Um estudo europeu mostrou que a maioria dos motoristas atende o celular em até dois segundos, ou seja, o telefone tem alta prioridade e atrapalha a concentração.
Diz a pesquisa de Toronto que o risco ao falar ao celular é semelhante ao de dirigir alcoolizado. Embora correto, é discutível, já que as ligações duram poucos minutos e o efeito da bebida, horas.
Na década de 30 cogitou-se proibir o uso do rádio no carro pela mesma razão. Desde então, muitos desastres graves resultaram do desvio de atenção ao se selecionar uma estação. Um lento desenvolvimento tecnológico trouxe os botões com estações pré-selecionadas e, recentemente, o botão no volante.
Acredito que não há o que discutir quanto à proibição do celular levado ao ouvido com a mão, especialmente se lembrarmos que a quase totalidade dos carros no Brasil tem câmbio mecânico, o que significa "aprisionar" a mão direita em mais cem mudanças de marcha por hora no trânsito urbano.
Quanto ao viva-voz, lembramos que a sociedade tolera certos níveis de risco. Por exemplo, é sabido que cerca de 2% dos motoristas dirigem com álcool acima do valor legal, mas que estão envolvidos em nada menos que 50% dos acidentes fatais. Para reduzir essa estatística, os países desenvolvidos ensinaram que são necessários centenas de milhares de testes anuais de bafômetro. Até hoje, entretanto, a sociedade brasileira não manifestou interesse em mudar a interpretação da Constituição pela qual o motorista não é obrigado a se submeter ao teste do bafômetro.
Assim, diante da importância do celular e da aceitação de certo grau de risco, entendo que o viva-voz deve ser permitido. Campanhas informativas podem ajudar na implantação de uma "etiqueta", rotulando de socialmente incorreto o uso frequente do aparelho, reduzir a duração das chamadas etc. Paralelamente, pesquisas mais aprofundadas deverão lançar mais luz sobre o assunto.
E não nos esqueçamos de que vem aí a ameaça do celular com imagem.


Gilberto Monteiro Lehfeld, 59, engenheiro, é consultor em segurança de trânsito. Foi presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego (1993-97).



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