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TENDÊNCIAS/DEBATES
O uso do celular viva-voz no trânsito deve ser proibido?
SIM
Pela vida
JOSÉ MONTAL
A qualidade da cidadania que hoje praticamos no trânsito e o nosso
posicionamento no ranking das fatalidades decorrentes de acidentes viários
não são casuais. Aqui o veículo automotor mata três vezes mais, pelo menos,
que na Europa ou nos EUA.
Não é privilégio do Brasil matar e
morrer no trânsito. A OMS acaba de estimar em 1 milhão o número anual de
mortos em sinistros viários. E só 10%
deles nos países mais desenvolvidos e,
portanto, mais motorizados. A carnificina maior é nos países como o nosso.
Também no trânsito, cidadania é informação, conscientização. A prática da cidadania pressupõe o respeito ao semelhante, a sua vida. Portanto informação
e disciplina no trânsito são sinônimos
de preservação da vida.
Mudanças no comportamento daquele que já foi definido como "troglodita do trânsito" teriam que ser iniciadas agora, com a conscientização das
nossas crianças, visando resultados a
médio prazo. A curto prazo, campanhas
maciças e constantes e esforço na feitura
e efetiva implementação de normas legais adequadas. Não temos o direito de
pensar que o acidente é inevitável, banal, inexorável. Todo acidente tem uma
causa, nada tem de acidental e é multifatorial. O fator humano prevalece como
causa em cerca de 90% das vezes.
Afirma-se que, ao conduzirmos um
veículo em velocidade, com trânsito pesado, tomamos cerca de 80 decisões por
minuto. O preço da desatenção será o
acidente. Um ferimento grave; a morte.
Em relação ao celular, o que está em
jogo não é a ocupação das mãos, e sim a
utilização da atenção. Seria o nosso cérebro capaz de se adaptar à necessidade
de manutenção da atenção exigida no
trânsito, onde a velocidade encurta o
tempo, e na conversa, sem perda de rendimento? Sua fantástica capacidade de
processamento se moldaria também a
essas exigências? Infelizmente, segundo
as pesquisas realizados, há limites.
Um estudo recente, conduzido pelo
prof. Luis Montoro, catedrático de Segurança Viária da Universidade de Valência, Espanha, equiparou o uso do celular ao volante ao risco representado
pelo condutor com 1% de álcool no sangue, nível elevado de alcoolemia, correspondente a cerca do dobro do permitido pela legislação da maioria dos países.
Observou ainda que, mesmo portando dispositivos capazes de manter livres
as mãos, como o viva-voz ou o fone de
ouvido, o condutor do veículo que falava ao celular deixava de perceber 40%
dos sinais de trânsito.
Alguns defensores do uso do celular
pelo motorista argumentam que os pilotos de corrida se comunicam com a
equipe durante as provas. Mas é evidente que tal condição só poderia ser extrapolada para as ruas se nestas houvesse
todo o aparato que garante a segurança
do piloto nos circuitos, inclusive uma
equipe médica instantaneamente disponível para qualquer emergência.
Finalmente, mas não menos importante, existe uma diferença fundamental entre dirigir falando ao celular e dirigir falando com um ocupante do veículo. Este último interlocutor estará vivenciando as situações de perigo no deslocamento do veículo, podendo até alertar sobre potenciais riscos, enquanto o
interlocutor do telefone móvel, ausente,
não terá tal percepção e continuará exigindo a atenção do motorista. Raciocínio idêntico se aplica em relação ao uso
de dispositivos como o rádio e afins.
Modificar comportamentos sociais
-o celular parece já fazer parte do corpo humano- nunca será pacífico. Nos
EUA, a sociedade e os legisladores de 40
Estados, cada um a sua maneira, procuram a melhor norma para regular a
questão. A posição mais firme não é a
dos legisladores, é a da CTIA (Cellular
Telecomunications and Internet Association), que diz haver exageros na avaliação dos riscos. Como médicos, temos
a obrigação de perguntar à CTIA quantas vidas perdidas seriam necessárias
para caracterizar tal exagero.
Em Nova York, que proibiu a convivência do motorista com o celular, apesar da dificuldade de aferição dos possíveis efeitos, já existe a percepção de que
houve redução de acidentes, decorridos
nove meses da vigência da lei.
Portugal proíbe o celular, com uma
exceção para "os aparelhos dotados de
um auricular ou de microfone com sistema alta voz, cuja utilização não implique manuseamento continuado", conforme o seu Código de Estrada. Uma
autoridade esclareceu, em entrevista,
que, no caso de o dispositivo utilizado
ser dotado de auriculares em duplicata,
um para cada ouvido, o condutor será
considerado infrator, mesmo que utilize só um dos auriculares. Não é mansa a
tarefa de estabelecer a melhor diretriz.
Mesmo assim, temos a convicção de
que as discussões até aqui geradas pela
norma do Denatran têm funcionado, ao
menos, como excepcional campanha de
conscientização acerca dos riscos decorrentes das falhas de atenção no trânsito. Parafraseando a máxima da propedêutica médica de que "não existem
doenças, existem doentes", podemos
afirmar que se fez no Brasil, talvez por
estradas tortas, a melhor divulgação
possível de um real fator de risco viário.
José Heverardo Montal, 53, é vice-presidente
da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego.
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