São Paulo, quarta-feira, 14 de outubro de 2009

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Editoriais

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Discurso da inocência

De uma ponta a outra do espectro político, crítica à imprensa é recurso frequente de acusados por irregularidades

NENHUMA afinidade ideológica, por certo, aproxima figuras como João Pedro Stedile, líder do MST, do presidente do Senado, José Sarney; tampouco o ex-ministro José Dirceu se situa no mesmo campo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Uma palavra mágica, entretanto, é capaz de irmaná-los, conforme a ocasião, numa notável concordância.
A palavra é "mídia". Abreviação confortável, porque impregnada de conotações "críticas", para qualquer órgão de comunicação, eletrônico ou impresso, que se disponha a noticiar denúncias, irregularidades, escândalos ou crimes que envolvam personalidades públicas.
Um grupo de vândalos do MST promove a destruição de milhares de pés de laranja numa fazenda do interior paulista; a TV transmite as cenas. Entrevistado pela Folha, João Pedro Stedile dá sua versão do ocorrido.
"A direita, por meio do serviço de inteligência da PM, soube utilizar [as imagens divulgadas] contra a reforma agrária, se articulando com emissoras de TV para usá-las insistentemente." Poderia dizer, até com maior verossimilhança, que "a direita" forjara todo o episódio, contratando falsos invasores para destruir a plantação.
Deixe-se o rústico ambiente mental em que florescem ideólogos do MST, e será fácil encontrar, nos salões atapetados do Congresso, o mesmo tipo de discurso. O presidente do Senado, José Sarney, declara que "de certo modo, a mídia é inimiga das instituições representativas".
Seguiu-se um adendo resvaladio: "Estou repetindo aquilo que, no mundo inteiro, hoje se discute". Da teoria à prática, foi rápido o percurso: o jornal "O Estado de S. Paulo" continua impedido de noticiar fatos a respeito de uma investigação da Polícia Federal que envolve a família Sarney.
É a "mídia", sempre a mídia, que se coloca "acima dos poderes e da Constituição", "não teme o Judiciário nem o Legislativo e afronta o Executivo": eis uma tese em que insiste cotidianamente o ex-ministro José Dirceu, deputado federal democraticamente cassado.
Com nuances de ênfase, o pensamento do líder petista faz rememorar o que dizia, há cerca de dez anos, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, quando vieram a público gravações sigilosas a respeito da privatização do sistema Telebrás.
"Os que movem a mídia", teorizou o peessedebista, "não sabem o poder que têm ou, às vezes, não trazem consigo a responsabilidade"; surgiriam assim "escândalos fabricados", uma vez que "nada é neutro nesse mundo político".
Nada é neutro, e são todos inocentes, é claro, "nesse mundo político". Resta apenas, de uma ponta a outra do espectro ideológico, uma origem a ser apontada para todos os males do país: a "mídia" -pois falar em "imprensa" desvelaria mais facilmente o intuito de censura.
Que seja. Por maiores que sejam suas deficiências e defeitos, não haveria melhor forma de elogiar os meios de comunicação do que as indignações de tantas figuras insuspeitas.


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