São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Waste land

SETORES DO governo vêem na proteção ambiental entraves ao desenvolvimento socioeconômico, supostamente conexo ao progresso social. Seus ditos são generalizados e abstraem as condições concretas desses processos.
Nesse assunto, deve-se lembrar que natureza e trabalho são, tanto uma como outro, a fonte de toda a riqueza material, mas que o vínculo entre ambos muda conforme o sistema produtivo em que se inserem. No caso em pauta, está em foco o agronegócio.
Desde o regime militar, modernizou-se a agropecuária, cuja mecanização crescente provocou aumento de produtividade e transformações nas formas do trabalho.
Nessa composição surgiu e cresceu a mão-de-obra temporária, mas posteriores inovações tecnológicas inverteram esse quadro, reduzindo o trabalho provisório ao passo que expandia o permanente (Staduto, Shikida, Bacha). Isso poderia parecer uma troca positiva na qualidade de vida do "bóia-fria", sem direitos trabalhistas, com jornadas extenuantes e doenças correlatas (Alessi, Navarro). Seu resultado, porém, foi a retração de emprego rural. De modo conexo, aumentou a força de trabalho excedente e não-qualificada, que nem por sua baixa remuneração interessa ao agronegócio.
As novas tecnologias poupadoras de mão-de-obra e minimizadoras de custos demandam operadores com instrução compatível. Essa dinâmica investe-se de autonomia no ajustamento das empresas aos mercados e ao selecionar o trabalhador apto (Staduto et al). "Neste país", onde a educação é menosprezada, torna-se difícil ao assalariado integrar-se a esse modelo avançado e escasso em emprego.
Portanto é endógeno a esse mecanismo a gênese de grandes contingentes rurais marginalizados, refazendo-se a velha figura do andarilho com a trouxa nas costas, egresso das grandes fazendas monocultoras. Agora não mais são vultos vagando solitários, e sim grupos, sempre na iminência de conflitos.
Esse problema social rapidamente converte-se em questão de polícia.
Voltando ao ponto de partida -natureza e trabalho são a fonte de toda riqueza material-, vemos que um desenvolvimento arbitrário pode levar à violência contra os dois termos desse binômio: profanar céus e terra e dissolver formas de vida humana. Nas milenares imagens da ferocidade política, o javali é, por excelência, símbolo destruidor. A parábola bíblica do porco selvagem devorando a obra divina e a metáfora poética do suíno bravo corroendo o corpo político (ainda Ricardo 3º) podem bem colher a força autoritária dessa dupla invasão de solos e almas. "Fechas a porta contra o leão, o leopardo, o lobo ou o javali/ Por que não, mais,/ Contra bestas com almas de homens danados/ Contra homens que se danariam a bestas" (Eliot).


sylvia.franco@uol.com.br

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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