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Margens opostas
ROBERTO MALVEZZI
O saldo do gesto de frei Luiz Cappio institui um abismo moral entre companheiros que até ontem bebiam da mesma água
O SALDO do gesto de frei Luiz
Cappio demarca as margens e
estabelece um abismo moral
entre companheiros que até ontem
bebiam da mesma água. O rio que nos
separa é mais profundo que o São
Francisco. O que está em jogo é o futuro deste país, do próprio planeta, da
própria humanidade.
Durante o longo "jejum e oração",
principalmente diante da iminência
de um desfecho trágico, o governo
aceitou mais uma conversa com os
opositores do projeto de transposição
do rio São Francisco.
Na sede da CNBB, diante de nossas
oito propostas alternativas à transposição, o governo reconheceu que seis
delas poderiam ser consideradas, particularmente as políticas públicas
contidas no "Atlas Nordeste" e a implementação de tecnologias de captação de água de chuva em projetos de
convivência com o semi-árido. Porém, o governo jamais aceitou rever o
projeto da transposição.
Será que o caminho do governo está
mesmo "livre" para prosseguir com o
projeto após a decisão do STF de liberar as obras? Uma obra de longo prazo, que envolve bilhões de reais durante sucessivos governos, nunca está
garantida antes de sua conclusão.
Há detalhes que escapam ao povo
brasileiro. Basta citar um, o "detalhe
Castanhão". Essa grande barragem
do Ceará, construída para receber as
águas do São Francisco, tem capacidade para armazenar 7 bilhões de metros cúbicos de água. Dali, ela será levada para a Grande Fortaleza, particularmente ao porto de Pecém, onde
se instalará um complexo industrial
demandante de água. Sem o Castanhão, praticamente não existe transposição para o Ceará.
Pois bem, a parede da barragem do
Castanhão foi construída sobre uma
falha geológica, sujeita a abalos sísmicos ("A Face Oculta do Castanhão",
Cássio Borges, 1999).
Os técnicos defensores da obra
sempre disseram que esse risco jamais existiria. Porém, dias atrás, a terra tremeu na região, causando rachaduras nas paredes, apavorando a população a jusante da barragem.
Alguns técnicos garantiram que sua
estrutura não está comprometida.
Mas quem garante que não ocorrerão
novos abalos, mais fortes que esses,
pondo em risco a estrutura da obra e
toda a população a jusante?
A preocupação fundamental demonstrada pelo governo foi "não fazer concessões ao bispo", como demonstração de "autoridade". Muitas
vezes, a expressão corrente foi que
"ceder liquidaria o Estado". Ou: "Agora é o São Francisco, depois podem
querer barrar usinas no rio Madeira".
Portanto, o governo sabe que o gesto de frei Luiz aponta não só contra o
governo e seu PAC mas também contra o modelo de desenvolvimento que
está sendo imposto sobre a natureza,
as pessoas e as comunidades mais pobres do país.
Os movimentos sociais somente
reivindicam que o governo cumpra o
que está proposto no "Atlas Nordeste", que é o principal estudo realizado
até hoje sobre a demanda humana de
água na região Nordeste. Foi elaborado pela ANA (Agência Nacional de
Águas), um organismo de Estado
(www.ana.gov.br).
Os técnicos da ANA sempre demarcam a distinção com a transposição
afirmando que "esta tem finalidade
econômica, enquanto o atlas tem finalidade de abastecimento humano".
Aqui está a razão maior de nossa divergência com o governo: na ótica dos
direitos humanos, dos princípios de
Dublin, que norteiam o manejo da
água no mundo contemporâneo, na
ótica cristã, na Lei Brasileira de Recursos Hídricos, a prioridade no uso
da água é saciar a sede humana e dessedentar os animais.
As propostas do "Atlas Nordeste"
alcançam 34 milhões de nordestinos
no meio urbano, em nove Estados e
1.356 municípios. Somados aos 10 milhões que poderíamos alcançar com a
captação de água de chuva no meio
rural, ofereceríamos segurança hídrica para 44 milhões de pessoas. Portanto, sua abrangência humana é
quase quatro vezes a da transposição.
Não temos medo de discutir o uso
econômico da água. Mas esse debate
precisa ser feito com profundidade,
principalmente numa região em que
apenas 5% do solo é irrigável e só temos água para irrigar 2% dele.
Em um momento histórico de diminuição da disponibilidade de água
e solos férteis em todo o planeta, queremos apenas que o governo tenha
critérios claros para o uso de bens tão
escassos e preciosos.
Na hora certa, retomaremos nossa
luta. Como os peixes de piracema,
que nadam contra a corrente reproduzindo a vida. Os que se deixam levar pelas águas não se reproduzem,
não contribuem com as gerações futuras. São devorados pelos homens.
ROBERTO MALVEZZI, 54, filósofo, é assessor da Comissão Pastoral da Terra e autor de "Semi-árido: uma Visão Holística".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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