São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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O mundo movente das ideologias

BORIS FAUSTO


Se os dois conceitos [esquerda e direita] ainda fazem sentido, evidenciam-se as aproximações

Seria absurdo pensar que o campo das ideologias, neste mundo complexo e quase sempre dramático, tende, por todas as partes, a encontrar um ponto comum. Mas no âmbito desse campo, deixando de lado fundamentalistas islâmicos ou não, guerrilheiros, terroristas, sonhadores com um mundo comunitário sem contradições, é possível fazer um recorte que permite pelo menos uma discussão mais homogênea. O recorte diz respeito às ideologias integrantes do pensamento laico ocidental, que tem como um de seus pressupostos centrais a separação das esferas da vida pública e da vida religiosa, quaisquer que sejam as opções individuais ou as crenças das pessoas.
Dois grandes rótulos estamparam-se no pensamento ocidental desde os fins do século 18, servindo para estabelecer o contraste ideológico. Estou me referindo às expressões "direita" e "esquerda", que, como se sabe, nasceram e ganharam longa vida a partir de uma referência espacial no curso da Revolução Francesa.
A questão que se impôs nos últimos decênios, em face dos rumos tomados pelo mundo ocidental, é se essas expressões ainda fazem sentido, se ainda se pode falar em direita e esquerda, na parte do mundo em que vivemos. Em meio às muitas posições a respeito, vale a pena partir do sugestivo livro de Norberto Bobbio, "Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política", publicado em 1994 (traduzido pela editora Unesp), no qual o pensador italiano sustenta a tese da atualidade dos dois conceitos.
Concordando com seu colega Marco Revelli nesse aspecto, Bobbio lembra as afirmações de Revelli, segundo as quais os conceitos de direita e esquerda não são absolutos nem qualidades intrínsecas ao universo político. São lugares do "espaço político", cujos conteúdos variam de acordo com os tempos e as situações, e não estão, pois, fixados para sempre.
A observação faz muito sentido. Posições até há algumas décadas consideradas integrantes do universo de uma ou outra concepção, hoje deixaram de ter um conteúdo explicativo definidor ou, mais ainda, passaram a desqualificar, nos dois campos, determinados regimes. Uma direita que aceita as regras do jogo democrático recusa afinidades com o fascismo, tido outrora como uma corrente de "direita revolucionária"; da mesma forma, correntes democráticas de esquerda situam-se bem longe das excrescências ditas de esquerda existentes no mundo.
É certo também que mudou o conteúdo das ideologias de direita e de esquerda. Nesse último caso, os critérios definidores não são a revolução, o papel dominante do Estado, ficando a sociedade em segundo plano, o partido autodefinido como vanguarda dos trabalhadores. Em seu lugar, ganharam relevância temas como a luta contra o preconceito racial; pela igualdade entre homens e mulheres, na esfera doméstica e no mercado de trabalho; pelo reconhecimento de comportamentos tidos como "desviantes"; pela defesa do ambiente, embora nesse aspecto convenha lembrar a existência dos "verdes de direita", na Europa.
Mas, se os dois conceitos ainda fazem sentido, evidenciam-se as aproximações, em contraste com a irredutibilidade do passado, o que certamente tem a ver com a liquidação dos totalitarismos. Não por acaso, a expressão "direita civilizada" ganhou foros de verdade, e uma "esquerda civilizada" se afirmou, recusando desastrosas utopias.
Em nosso país, o avanço até excessivo do pragmatismo político tem um bom exemplo no destino da ideologia e da prática comunista, considerando que, por muito tempo, "comunismo" e "esquerda" foram expressões quase sinônimas. Um dos principais divisores do universo político, desde o início dos anos 30, a opção pelo comunismo no figurino soviético deu origem e sentido a muitos episódios: entre eles, a aventura insurrecional de 1935, "excelente", embora não exclusivo, pretexto para o golpe do Estado Novo; o golpe militar de 1964, ancorado socialmente no pânico anticomunista, que as aventuras do populismo ajudaram a acelerar.
Tudo isso é passado. O comunismo deixou de ser um vetor carregado de significações no mundo simbólico e no mundo político. Para ficar em um recente e localizado exemplo: por acaso a opinião pública se preocupa com o fato de o recém nomeado articulador político do governo Lula pertencer aos quadros do PC do B?
Por último, uma ressalva, já contida no título deste artigo. O mundo das ideologias é movente, por isso seria ilusório tomar o quadro e as certezas de hoje como o quadro e as certezas de amanhã. Isso nos induz a um certo ceticismo, o que não significa misturar todas as águas, mas localizar os confrontos ideológicos nos pontos mais sensíveis onde eles precisam ser travados.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP, e docente no programa de doutorado do Instituto Universitário Ortega y Gasset, de Madri. É autor de, entre outras obras, "História do Brasil" (Edusp).


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