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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Sonhando com milhões
NOSSA POLÍTICA é antro de
mentiras. Hilária e tétrica, é
a chanchada "Se meu Dólar
Falasse" vivida não por Dercy Gonçalves, mas pela trinca assessor-parlamentar-advogado. Preso com
dólares na roupa, Adalberto os atribui ao padrinho, Kennedy, que implica Guimarães, chefe de Adalberto e irmão de Genoíno, que renuncia e volta ao Congresso. A ciranda
fecha-se: Adalberto urge com Guimarães: "Corra para cá que é uma
razão de Estado". O rocambole
evolui: os atores brigam, assustam-se, escondem-se; a razão de Estado
murcha em favores partidários e
negócios privados.
Nada de muito novo. Segredo,
dissimulação, fraude na governança percorrem séculos. A mentira
política já aparece em Platão. Na
República, a dinâmica expansiva
da cidade inicial, mínima e autosuficiente, rumo à maior complexidade interna e às conquistas exteriores, gera conflitos de soberania.
Nascem a guerra e o guardião, apto
à defesa pátria e à luta por sua hegemonia.
A índole do guerreiro deve unir
gentileza (doméstica) e agressividade (externa), compondo uma natureza contraditória, porém não
impossível: análogos dons aparecem no cão, dócil com familiares,
hostil a estranhos. Capaz de distingui-los, ele conhece e discerne,
aprende. Ao construir o corpo político, Sócrates evoca um antigo bestiário para esboçar uma de suas figuras básicas: o jovem de boa cepa
e o cão de boa raça são adestráveis.
No campo da crença e da opinião,
onde se educa o guerreiro, a mentira faz-se útil ao Estado. Não a mentira "verdadeiramente", sobre coisas reais, que é odiosa, mas a mentira "em palavras" que não é pura,
porém mista de verdade. Trata-se
do veto aos contos infantis e à poesia para incutir no jovem as virtudes políticas. Assim, a fábula sobre
a gestação do guerreiro no útero da
terra, para que a ame como sua
mãe, é "nobre mentira", imagem
que atinge sobretudo os sentidos e
fecha o debate sobre o preparo do
jovem guardião (inclusive ginástica e música). Sobre a credibilidade
desses mitos, Sócrates diz que, à
força de repetidos, serão aceitos.
No Estado aristocrático, o artífice da polis, ciente da verdade, maquina a mentira para crianças e jovens. Ela é vedada ao homem comum, tutelado político. Será diferente quando a cidade platônica
completar-se e a razão constituir
sua base e penhor. Hoje, na democracia, onde o povo é soberano e
decide pelo voto autônomo, não há
mentira cívica justificável. Piora,
ao amesquinhar-se. Agora, a mentira "em palavras" caberia à literatura, que, desprendendo-se do rotineiro, alcança a verdade. A repetição persuasiva do engodo tem lugar na propaganda. Nossos artífices e legisladores chamam-se
Mendonça e Santana.
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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