São Paulo, segunda, 15 de fevereiro de 1999

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Fantasias

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Era comum, na alta, baixa e tardia Idade Média, os místicos colocarem em suas celas uma caveira para nunca se esquecerem de que, mais cedo ou mais tarde, seriam reduzidos àquilo. Alguns santos daquele período até hoje são reproduzidos em piedosas estampas com a caveira ao lado.
Hamlet também costuma ser representado segurando uma caveira, essa a de Yorik. Os frascos que contêm veneno, os trechos perigosos das estradas, a bandeira negra dos piratas e até o escudo do Esquadrão da Morte, aqui do Rio, também exibem uma caveira.
Nos exemplos citados, sobretudo no caso dos santos, a caveira é uma advertência. Desnudando a soberba humana, mitigando a sede dos prazeres, ela não chega a ser uma imagem da morte, mas um anúncio de nós mesmos, daquilo que seremos um dia.
Bem, não sou candidato à glória dos altares nem a minha malignidade chega ao ponto de me obrigar a usar uma caveira para alertar o próximo. Daí que para uso próprio tenho um velho retrato, já amarelado, de um menino de seus nove anos, vestido de chinês ou japonês, acho que dava na mesma.
Mal dá para ver o cavanhaque de rolha queimada que minha mãe pintou no meu rosto. Vê-se bem o chapéu em forma de abajur, a sombrinha de varetas e um pouco do rabicho postiço que o vento fez aparecer na foto.
Os santos olhavam a caveira para se livrarem de tentações. Faço o mesmo com aquele retrato de chinês (ou japonês) aos nove anos. Os santos refletiam sobre o que seriam. Eu medito sobre o que já fui. É mais ou menos a mesma coisa.
Garanto que não há orgulho humano que resista, quer à imagem de uma caveira, quer à imagem de um guri fantasiado de chinês ou japonês.
Pior mesmo deve ser um menino chinês ou japonês fantasiado de brasileiro. Nem sei ao certo como deve ser uma fantasia de brasileiro. Mas deve ser uma boa advertência.



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