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Fantasias
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Era comum, na alta,
baixa e tardia Idade Média, os místicos colocarem em suas celas uma caveira para nunca se esquecerem de
que, mais cedo ou mais tarde, seriam
reduzidos àquilo. Alguns santos daquele período até hoje são reproduzidos em piedosas estampas com a caveira ao lado.
Hamlet também costuma ser representado segurando uma caveira, essa
a de Yorik. Os frascos que contêm veneno, os trechos perigosos das estradas, a bandeira negra dos piratas e até
o escudo do Esquadrão da Morte, aqui
do Rio, também exibem uma caveira.
Nos exemplos citados, sobretudo no
caso dos santos, a caveira é uma advertência. Desnudando a soberba humana, mitigando a sede dos prazeres,
ela não chega a ser uma imagem da
morte, mas um anúncio de nós mesmos, daquilo que seremos um dia.
Bem, não sou candidato à glória dos
altares nem a minha malignidade
chega ao ponto de me obrigar a usar
uma caveira para alertar o próximo.
Daí que para uso próprio tenho um
velho retrato, já amarelado, de um
menino de seus nove anos, vestido de
chinês ou japonês, acho que dava na
mesma.
Mal dá para ver o cavanhaque de
rolha queimada que minha mãe pintou no meu rosto. Vê-se bem o chapéu
em forma de abajur, a sombrinha de
varetas e um pouco do rabicho postiço
que o vento fez aparecer na foto.
Os santos olhavam a caveira para se
livrarem de tentações. Faço o mesmo
com aquele retrato de chinês (ou japonês) aos nove anos. Os santos refletiam sobre o que seriam. Eu medito
sobre o que já fui. É mais ou menos a
mesma coisa.
Garanto que não há orgulho humano que resista, quer à imagem de uma
caveira, quer à imagem de um guri
fantasiado de chinês ou japonês.
Pior mesmo deve ser um menino chinês ou japonês fantasiado de brasileiro. Nem sei ao certo como deve ser
uma fantasia de brasileiro. Mas deve
ser uma boa advertência.
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