São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Advogado e coronel

SAULO RAMOS

O Nordeste é muito rico em histórias. Contaram-me, certa vez, que um jovem advogado, recém-formado, aceitou defender um réu acusado de ser matador profissional, mas somente matava bandido por encomenda da família das vítimas assassinadas por outros pistoleiros. Em conversa com seu pai, o causídico foi aconselhado a procurar o chefe político da região da cidade onde se realizaria o julgamento pelo júri popular. Meio vexado, procurou o coronel. E explicou que a acusação era exagerada, homicídios qualificados, agravantes de todas as espécies, tocaias, emboscadas, crimes continuados mediante paga, pena de 12 a 30 anos de reclusão. Tentou explicar que seu cliente agia em razão de relevante valor social, pois era um justiceiro, quando o coronel o interrompeu:
"Pode parar, meu filho. Essas coisas não contam. São muito complicadas. Sou amigo de seu pai e vou atender ao pedido dele. Diga-me, sem arrodeios, o que você quer".
O advogado disse que queria, para seu cliente, a pena mínima do homicídio simples: seis anos reduzida de um terço.


José Dirceu merecia defesa melhor: ninguém duvida de sua formação moral e, até prova em contrário, é inocente
No dia do julgamento, o promotor fez sustentação não muito eloqüente e ele caprichou na defesa, citando juristas nacionais e estrangeiros, examinou detalhadamente a denúncia, qualificou-a de inepta e não sofreu apartes do acusador. Final: o júri deliberou e seu cliente foi condenado a quatro anos, tal como pedira ao coronel.
Exultante com a vitória, foi agradecer ao coronel e ouviu: "Tem nada não, meu filho. Não podia deixar de atender a um pedido de seu pai. Mas não foi fácil. Tive que dobrar muitos cabras teimosos. Foi difícil, porque os jurados queriam absolver seu cliente. Agora me diga: quer que ele cumpra a pena ou posso mandar soltar?".
Além dessa demonstração de como funciona o controle externo do Judiciário, quando exercido por chefes políticos, o jovem causídico descobriu também porque o promotor não lutou como devia: sabendo das tratativas e que o réu seria condenado ao menos a quatro anos, não quis fazer nada que pudesse absolvê-lo.
Há alguns advogados que, por ingenuidade ou inexperiência, conseguem condenar seus clientes quando podiam absolvê-los, não por influência externa, como na história nordestina, mas pela inabilidade da defesa e, o que é mais comum, por irritarem os julgadores com teses mal elaboradas que, em vez de conduzirem à absolvição ou ao benefício da dúvida, aumentam a pena dos seus constituintes.
É mais ou menos desse tipo a defesa do governo e do ministro José Dirceu feita pelo PT no caso Waldomiro Diniz, que também é da Silva. Desengonçada, atrapalhada, ofensiva à inteligência das pessoas. Dizer que o fato se deu há dois anos e, por isso, não atinge o governo atual é defesa fraca diante do preceito jurídico da culpa "in eligendo" ou "omitendo". Um ditado, bem ao gosto do presidente Lula, destrói a tese: cesteiro, que faz um cesto, faz um cento.
O chefe da Casa Civil merecia defesa melhor. E simples: ninguém duvida de sua formação moral e, até prova em contrário, é inocente, direito constitucional e ético que a todos protege. Foi vítima dos complexos labirintos do exercício do poder, por onde espertos se infiltram, insinuam-se, tornam-se amigos e traem a confiança. Esse tipo de infiltração já ocorreu até no Banco do Vaticano, lembram-se?
Não foi feliz o PT ao acusar a oposição e a imprensa. O fato aconteceu. Ninguém inventou nada. Bastava demonstrar que o infiltrado foi pego, que a divulgação da fita teve esse fato positivo, que outros poderão existir e que serão bem-vindas todas as denúncias que os desmascarem. Pronto, nada mais.
Quanto à CPI dos bingos, apresentada ao Senado com suficiência de assinaturas, está sujeita ao regimento interno, que exige dos partidos políticos a indicação de seus componentes. Se não o fizerem, a mesa do Senado não pode suprir a omissão, simplesmente porque isto não está escrito no regimento. Não sei por que tentaram massacrar o senador José Sarney por se recusar a reescrever de forma ilegítima as regras regimentais, que não admitem interpretação analógica, extensiva, supressiva ou inclusiva.
Na ciência jurídica há princípios fundamentais incontornáveis. Em direito privado pode-se praticar tudo o que a lei não proíbe. Em direito público somente se pode fazer aquilo que a lei expressamente permite. Antes de qualquer bate-boca político é preciso lembrar isto. Regimento interno do Poder Legislativo reúne normas de direito público, tanto que regula o processo legislativo. Assim, se não autoriza o suprimento de atos reservados às lideranças dos partidos, ninguém pode invocar o direito de praticá-los em substituição aos seus titulares.
Não sei por que o Brasil ainda bate tanta boca em razão de coisas simples. Se os inconformados forem ao Supremo Tribunal Federal, posso antecipar o resultado: perderão de 11 a 0, porque a matéria é "interna corporis". Creio que os políticos deviam consultar mais os advogados e menos os coronéis do antigo controle externo do Judiciário.



José Saulo Pereira Ramos, 74, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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