São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A guerra do pós-guerra

CARLOS DE MEIRA MATTOS

O amplo e planejado emprego do terrorismo suicida em escala mundial, por grupos radicais islamitas, vem abalando os tradicionais conceitos clássicos de guerra e de poder militar.
No cenário da guerra apareceu um novo instrumento de agressão, terrível, irrefreável, de efeito paralisante sobre as atividades normais da sociedade civil visada como inimiga. No tocante ao poder militar, baseado na qualidade dos efetivos e na capacidade de projeção e de destruição das armas, perdeu ele a sua eficácia ante o terrorismo -diante da diluição e fugacidade do alvo a ser atacado. A espetacular demonstração de força do terrorismo islâmico revelada nos ataques suicidas de 11 de setembro de 2001, derrubando as torres do World Trade Center, em Nova York, e atingindo o Pentágono, em Washington, utilizando aviões comerciais como se fossem mísseis, prolonga-se em atentados menos grandiosos, mas constantes.
O comprovante da mudança na concepção de poder militar está no ambiente de medo, insegurança, expectativa de agressão inopinada em que vive a população norte-americana e a dos principais países europeus, apesar da enorme superioridade em recursos bélicos de que dispõem. O novo inimigo suicida não oferece nenhum alvo para as poderosas armas modernas.
O perigo não se sabe de onde vem e nem quando se materializa em atentado imprevisível e incontrolável. A sociedade civil vive o seu dia-a-dia atemorizada, sua atividade restrita, não somente no Oriente Médio, Afeganistão e Iraque, com seus rescaldos de guerras inacabáveis, mas nos Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, Itália, Turquia e outros territórios visados pelo terrorismo islâmico.


A maior dádiva da civilização ocidental cristã, a liberdade, passou a viver sob constante restrição e ameaças
Os atentados suicidas, inesperados, violentos, sucedem-se pelo mundo -um teatro em Moscou, sinagogas na Turquia, edifícios residenciais na Arábia Saudita, entre outros. O alvo é escolhido por uma direção centralizada do terrorismo, supostamente a organização Al Qaeda. A escolha recai sempre sobre um país aliado do governo de Washington nas guerras do Afeganistão e do Iraque.
A maior dádiva da civilização ocidental cristã, a liberdade, passou a viver sob constante restrição e ameaças. O clima de expectativa de atentado vem obrigando as empresas aéreas a cancelar vôos internacionais, os viajantes a se submeterem a humilhantes medidas de segurança. Os congressistas norte-americanos, mais de uma vez, tiveram que abandonar às pressas o edifício do Parlamento ao sinal de alarme. O público freqüentador de museus, teatros e boates, nos países ameaçados, tem que se habituar ao clima de sobressalto ante um inesperado ato de violência. As autoridades são obrigadas a reforçar a proteção de túneis, pontes, aeroportos, portos, estações ferroviárias e de metrôs, aumentando enormemente a despesa pública com medidas de proteção. A liberdade de ir e vir, pérola da sociedade liberal democrática, está limitada.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, os analistas internacionais anunciaram o fim da bipolaridade do poder mundial e a inauguração da incontestável hegemonia política e militar dos Estados Unidos sobre todo o planeta. Após o 11 de Setembro, aos poucos vem voltando a bipolaridade, acentuando-se cada vez mais a força adquirida pelo radicalismo islâmico, através de sua arma indefensável, o homem suicida.
Os países liberais democráticos, no curso dos últimos cem anos, enfrentaram três tipos de inimigos maiores, que tentaram destruir os fundamentos de sua cultura: Hitler, com o Estado racista; Stálin, com o Estado marxista; e agora o radicalismo islâmico, com o Estado religioso, intolerante. Comparando estes três inimigos, o conceituado analista político norte-americano Thomas Friedman considera o radicalismo islâmico o mais perigoso, porque os alemães e os russos tinham com os aliados um traço comum, prezavam a vida, queriam viver, e isso abriu algum espaço de entendimento para desradicalizar a guerra, enquanto o terrorista suicida só quer morrer.
O terrorista suicida, o homem-bomba, o piloto suicida, movidos pelo fanatismo odioso e cego, estão prolongando o ambiente de guerra dos conflitos bélicos considerados formalmente terminados. É a guerra do após guerra.


Carlos de Meira Mattos, 90, general reformado do Exército e doutor em ciência política, é veterano da Segunda Guerra Mundial e conselheiro da Escola Superior de Guerra.


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