|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil deveria agir de maneira recíproca no caso dos brasileiros barrados na Europa?
SIM
Reciprocidade não é vingança
CEZAR BRITTO
O PRINCÍPIO da reciprocidade,
recém-invocado na crise dos
vistos entre Espanha e Brasil,
tem sido historicamente praxe nas
relações diplomáticas entre países.
Não se trata, como alguns supõem, de
uma lei de talião disfarçada. Reciprocidade não é vingança.
É a adoção de procedimentos equânimes entre as partes, de modo a levá-las a uma reflexão justa e comum a
respeito de suas relações. Se a devolução insensata de visitantes incomodou a Espanha, foi, no entanto, a maneira mais convincente que o governo
brasileiro, que já vinha sendo alvo
desse método há anos, encontrou de
levá-la à mesa de negociações.
De lá emergirá, sem dúvida, fórmula mais sensata e civilizada de tratar
as questões que geraram o contencioso. Nada mais democrático, nada
mais objetivo. As autoridades espanholas argumentam que parte expressiva dos migrantes brasileiros
chega ao país sem eira nem beira, para engrossar o exército de desempregados no país, gerando danos sociais.
Também as autoridades brasileiras
constatam que há um grande contingente de espanhóis entre os que aliciam no Brasil jovens para a indústria
do lenocínio. Lá como cá, não há oferta sem procura. Aqui, fala-se em "máfia espanhola" -e os repórteres de
polícia de ambos os países conhecem
essa história em detalhes.
Em nenhum dos dois casos, há reclamações formais por parte das respectivas chancelarias, mas sabe-se
que o cenário existe, embora não justifique o estremecimento de relações.
Ao contrário, deve constituir motivo para estreitamento de relações e
estabelecimento de mútua cooperação. O princípio se estende a toda a
União Européia, matriz do rigor que
resulta em sucessivos atos discricionários. Registre-se que os atos que geraram o recente contencioso não se
restringem à Espanha. Também
França e Alemanha têm sido pródigas
em praticá-los.
O argumento espanhol sobre a qualidade moral dos que migram do Brasil fragiliza-se quando se constata
que, entre os visitantes devolvidos,
após humilhações e maus-tratos, estavam dois mestrandos de uma universidade carioca, plenamente documentados e credenciados e que nem
na Espanha iriam ficar: dirigiam-se a
um congresso em Lisboa, onde defenderiam teses.
As autoridades aduaneiras espanholas desprezaram a documentação
exibida -minuciosa e incontestável.
Havia uma cota de devolução de brasileiros a ser cumprida, independentemente de qualquer documentação,
segundo se constatou. Nesses termos,
convenhamos, não há boa-fé que resista. Permeia esse procedimento antigo preconceito contra a população
das antigas colônias européias nas
Américas. Se se tratasse apenas de
triagem ou estabelecimento de cotas
para imigrantes, não haveria problemas. Só que não era -e não é.
Em busca de assegurar direitos recíprocos, decidi reunir-me, em Lisboa, com o presidente do Conselho
Geral da Advocacia Espanhola, Carlos
Carnicer Díez. Acordamos a criação
de uma rede de solidariedade e defesa
de cidadãos ameaçados no seu ir e vir.
As ordens estarão em contato a partir de agora e divulgarão esses serviços aos que sofrerem esse tipo de
coerção. Mais: decidimos promover
encontro com todos os presidentes de
ordens de países ex-colônias de Portugal e Espanha para que, juntos, possamos resolver esse grave problema,
que não ocorre apenas na Europa. Há
estrangeiros presos no Brasil e em
países de América do Sul e África, sem
contato com suas embaixadas e famílias. São exemplos que fortalecem a
necessidade de reciprocidade no direito de defesa de todos os cidadãos
do mundo. Esse tema, inclusive, será
objeto de fórum que faremos no Brasil em novembro, em Natal.
O Brasil é fruto da colonização ibérica. Tem sangue espanhol, já que,
ainda no século de sua descoberta, foi
governado por Madri, durante o período (1580-1640) em que Portugal
esteve subjugado à Espanha. A família real espanhola descende da antiga
família imperial brasileira.
Tudo induz à convergência e ao entendimento. A rejeição recíproca,
além de incompatível com fundamentos básicos do processo civilizatório, é paradoxo insustentável que a
boa vontade diplomática há de superar. Reciprocidade, então, voltará a
soar como a doce palavra que é.
CEZAR BRITTO, 46, é presidente nacional da OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Octávio Luiz Motta Ferraz: Solução imoral e enganosa
Índice
|