São Paulo, sábado, 15 de março de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil deveria agir de maneira recíproca no caso dos brasileiros barrados na Europa?

SIM

Reciprocidade não é vingança

CEZAR BRITTO

O PRINCÍPIO da reciprocidade, recém-invocado na crise dos vistos entre Espanha e Brasil, tem sido historicamente praxe nas relações diplomáticas entre países. Não se trata, como alguns supõem, de uma lei de talião disfarçada. Reciprocidade não é vingança.
É a adoção de procedimentos equânimes entre as partes, de modo a levá-las a uma reflexão justa e comum a respeito de suas relações. Se a devolução insensata de visitantes incomodou a Espanha, foi, no entanto, a maneira mais convincente que o governo brasileiro, que já vinha sendo alvo desse método há anos, encontrou de levá-la à mesa de negociações.
De lá emergirá, sem dúvida, fórmula mais sensata e civilizada de tratar as questões que geraram o contencioso. Nada mais democrático, nada mais objetivo. As autoridades espanholas argumentam que parte expressiva dos migrantes brasileiros chega ao país sem eira nem beira, para engrossar o exército de desempregados no país, gerando danos sociais.
Também as autoridades brasileiras constatam que há um grande contingente de espanhóis entre os que aliciam no Brasil jovens para a indústria do lenocínio. Lá como cá, não há oferta sem procura. Aqui, fala-se em "máfia espanhola" -e os repórteres de polícia de ambos os países conhecem essa história em detalhes.
Em nenhum dos dois casos, há reclamações formais por parte das respectivas chancelarias, mas sabe-se que o cenário existe, embora não justifique o estremecimento de relações.
Ao contrário, deve constituir motivo para estreitamento de relações e estabelecimento de mútua cooperação. O princípio se estende a toda a União Européia, matriz do rigor que resulta em sucessivos atos discricionários. Registre-se que os atos que geraram o recente contencioso não se restringem à Espanha. Também França e Alemanha têm sido pródigas em praticá-los.
O argumento espanhol sobre a qualidade moral dos que migram do Brasil fragiliza-se quando se constata que, entre os visitantes devolvidos, após humilhações e maus-tratos, estavam dois mestrandos de uma universidade carioca, plenamente documentados e credenciados e que nem na Espanha iriam ficar: dirigiam-se a um congresso em Lisboa, onde defenderiam teses.
As autoridades aduaneiras espanholas desprezaram a documentação exibida -minuciosa e incontestável.
Havia uma cota de devolução de brasileiros a ser cumprida, independentemente de qualquer documentação, segundo se constatou. Nesses termos, convenhamos, não há boa-fé que resista. Permeia esse procedimento antigo preconceito contra a população das antigas colônias européias nas Américas. Se se tratasse apenas de triagem ou estabelecimento de cotas para imigrantes, não haveria problemas. Só que não era -e não é.
Em busca de assegurar direitos recíprocos, decidi reunir-me, em Lisboa, com o presidente do Conselho Geral da Advocacia Espanhola, Carlos Carnicer Díez. Acordamos a criação de uma rede de solidariedade e defesa de cidadãos ameaçados no seu ir e vir.
As ordens estarão em contato a partir de agora e divulgarão esses serviços aos que sofrerem esse tipo de coerção. Mais: decidimos promover encontro com todos os presidentes de ordens de países ex-colônias de Portugal e Espanha para que, juntos, possamos resolver esse grave problema, que não ocorre apenas na Europa. Há estrangeiros presos no Brasil e em países de América do Sul e África, sem contato com suas embaixadas e famílias. São exemplos que fortalecem a necessidade de reciprocidade no direito de defesa de todos os cidadãos do mundo. Esse tema, inclusive, será objeto de fórum que faremos no Brasil em novembro, em Natal.
O Brasil é fruto da colonização ibérica. Tem sangue espanhol, já que, ainda no século de sua descoberta, foi governado por Madri, durante o período (1580-1640) em que Portugal esteve subjugado à Espanha. A família real espanhola descende da antiga família imperial brasileira.
Tudo induz à convergência e ao entendimento. A rejeição recíproca, além de incompatível com fundamentos básicos do processo civilizatório, é paradoxo insustentável que a boa vontade diplomática há de superar. Reciprocidade, então, voltará a soar como a doce palavra que é.


CEZAR BRITTO, 46, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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