São Paulo, sábado, 15 de março de 2008

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O Brasil deveria agir de maneira recíproca no caso dos brasileiros barrados na Europa?

NÃO

Solução imoral e enganosa

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ

UM ESPECTRO ronda a Europa: o fantasma da imigração. Para se defender desse suposto mal, os países mais ricos desse continente -conseqüentemente, os que mais atraem imigrantes- vêm endurecendo suas leis de imigração nos últimos anos. Esse endurecimento é bastante popular com grande parte da população européia, que costuma culpar o imigrante, com ou sem razão, por quase todos os males que a afligem: redução das oportunidades de emprego, pressão sobre os recursos escassos dos serviços públicos, aumento da criminalidade (incluindo-se aqui a ameaça, real ou exagerada, do terrorismo) etc.
A hostilidade ao imigrante, comum em qualquer época e lugar, foi exacerbada nos últimos anos pela integração à União Européia de novos países do Leste Europeu, como Polônia, República Tcheca e, mais recentemente, Bulgária e Romênia, que gerou novas ondas migratórias para o oeste mais rico. Como as leis da UE sobre o livre movimento de pessoas dificultam a contenção desse fluxo, governantes ansiosos por atender ao sentimento popular acabam se virando contra os estrangeiros não-europeus, incluindo-se aqui os brasileiros, e levantando ainda mais os muros do chamado "Forte Europa".
Não surpreende, portanto, que o número de brasileiros "barrados" seja grande e venha aumentando ano a ano. Esta Folha já noticiava, em 2005, que o Brasil fora o campeão de entradas negadas no Reino Unido em 2004 ("Brasil agora lidera ranking de barrados pelo Reino Unido", 23/11/ 2005). Nem tampouco surpreende que a gritaria tenha ocorrido só agora, momento em que as medidas começam a afetar o "andar de cima" brasileiro. É preocupante, porém, o foco quase exclusivo do debate na retaliação (ou "reciprocidade", para os adeptos do tecnicismo eufemístico) como possível solução ao problema.
Devemos dar igual tratamento aos europeus que venham aportar em nossas praias?
A posição dos que defendem a "reciprocidade", como o respeitado colunista desta Folha Elio Gaspari ("O Brasil precisa começar a deportar", 27/2), me parece questionável do ponto de vista moral e prático, ainda que usada apenas como último recurso. Não se trata aqui, é bom esclarecer, de simples aplicação da infame lei de talião ("olho por olho, dente por dente"), que pressupõe ao menos identidade entre ofensor e punido.
Pior, trata-se de pura e ignóbil instrumentalização utilitarista da punição: castigam-se alguns indivíduos inocentes com o fim de se modificar a conduta de terceiros, no caso, oficiais e funcionários de seu governo.
Além disso, a potencial eficácia da estratégia da "reciprocidade" é, para se dizer o mínimo, bastante limitada.
Ela pressupõe uma equivalência entre a situação dos atuais "barrados" na Europa e dos futuros europeus a serem "barrados" no Brasil que claramente não existe. "Barraremos turistas, físicos e engenheiros espanhóis e ingleses para que eles parem de barrar nossos médicos, estudantes e empresários!" Ora, a grande maioria dos "barrados" brasileiros não viaja ao exterior com os objetivos que as regras imigratórias estabelecem como "legítimos" (turismo, educação, negócios etc.), mas sim em busca de melhores condições de vida, o que tais regras geralmente proíbem (a chamada "imigração econômica"). Ainda que a estratégia da retaliação funcionasse, portanto, só beneficiaria uma minoria, não a crescente massa de brasileiros amontoados diante das pontes levadiças do "Forte Europa".
Como impedir, então, que o legítimo sonho desses milhares de brasileiros dependa dos humores e rigores dos oficiais de imigração dos países desenvolvidos? A resposta, muito simples, está invariavelmente presente no programa político de qualquer candidato e foi erigida a princípio constitucional em 1988: "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I da Constituição Federal). A dificuldade de implementá-la é outra história conhecida, e a "reciprocidade", mais uma distração nesse longo e tortuoso caminho.


OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 36, mestre em direito pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito na Universidade de Warwick (Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator especial da ONU para o direito à saúde (2006).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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