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O Brasil deveria agir de maneira recíproca no caso dos brasileiros barrados na Europa?
NÃO
Solução imoral e enganosa
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ
UM ESPECTRO ronda a Europa:
o fantasma da imigração. Para
se defender desse suposto mal,
os países mais ricos desse continente
-conseqüentemente, os que mais
atraem imigrantes- vêm endurecendo suas leis de imigração nos últimos
anos. Esse endurecimento é bastante
popular com grande parte da população européia, que costuma culpar o
imigrante, com ou sem razão, por
quase todos os males que a afligem:
redução das oportunidades de emprego, pressão sobre os recursos escassos dos serviços públicos, aumento da criminalidade (incluindo-se
aqui a ameaça, real ou exagerada, do
terrorismo) etc.
A hostilidade ao imigrante, comum
em qualquer época e lugar, foi exacerbada nos últimos anos pela integração à União Européia de novos países
do Leste Europeu, como Polônia, República Tcheca e, mais recentemente,
Bulgária e Romênia, que gerou novas
ondas migratórias para o oeste mais
rico. Como as leis da UE sobre o livre
movimento de pessoas dificultam a
contenção desse fluxo, governantes
ansiosos por atender ao sentimento
popular acabam se virando contra os
estrangeiros não-europeus, incluindo-se aqui os brasileiros, e levantando ainda mais os muros do chamado
"Forte Europa".
Não surpreende, portanto, que o
número de brasileiros "barrados" seja
grande e venha aumentando ano a
ano. Esta Folha já noticiava, em
2005, que o Brasil fora o campeão de
entradas negadas no Reino Unido em
2004 ("Brasil agora lidera ranking de
barrados pelo Reino Unido", 23/11/
2005). Nem tampouco surpreende
que a gritaria tenha ocorrido só agora, momento em que as medidas começam a afetar o "andar de cima"
brasileiro. É preocupante, porém, o
foco quase exclusivo do debate na retaliação (ou "reciprocidade", para os
adeptos do tecnicismo eufemístico)
como possível solução ao problema.
Devemos dar igual tratamento aos
europeus que venham aportar em
nossas praias?
A posição dos que defendem a "reciprocidade", como o respeitado colunista desta Folha Elio Gaspari ("O
Brasil precisa começar a deportar",
27/2), me parece questionável do
ponto de vista moral e prático, ainda
que usada apenas como último recurso. Não se trata aqui, é bom esclarecer, de simples aplicação da infame
lei de talião ("olho por olho, dente por
dente"), que pressupõe ao menos
identidade entre ofensor e punido.
Pior, trata-se de pura e ignóbil instrumentalização utilitarista da punição:
castigam-se alguns indivíduos inocentes com o fim de se modificar a
conduta de terceiros, no caso, oficiais
e funcionários de seu governo.
Além disso, a potencial eficácia da
estratégia da "reciprocidade" é, para
se dizer o mínimo, bastante limitada.
Ela pressupõe uma equivalência entre a situação dos atuais "barrados"
na Europa e dos futuros europeus a
serem "barrados" no Brasil que claramente não existe. "Barraremos turistas, físicos e engenheiros espanhóis e
ingleses para que eles parem de barrar nossos médicos, estudantes e empresários!" Ora, a grande maioria dos
"barrados" brasileiros não viaja ao
exterior com os objetivos que as regras imigratórias estabelecem como
"legítimos" (turismo, educação, negócios etc.), mas sim em busca de melhores condições de vida, o que tais
regras geralmente proíbem (a chamada "imigração econômica"). Ainda
que a estratégia da retaliação funcionasse, portanto, só beneficiaria uma
minoria, não a crescente massa de
brasileiros amontoados diante das
pontes levadiças do "Forte Europa".
Como impedir, então, que o legítimo sonho desses milhares de brasileiros dependa dos humores e rigores
dos oficiais de imigração dos países
desenvolvidos? A resposta, muito
simples, está invariavelmente presente no programa político de qualquer candidato e foi erigida a princípio constitucional em 1988: "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I da Constituição Federal). A dificuldade de implementá-la é outra história conhecida, e a "reciprocidade", mais uma distração
nesse longo e tortuoso caminho.
OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 36, mestre em direito
pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito na Universidade de Warwick (Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator
especial da ONU para o direito à saúde (2006).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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