São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2010

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MARINA SILVA

Além de si mesmo

A LIBERDADE , um dos direitos básicos da vida, é algo tão visceral e tão intrínseco à condição humana que, em determinadas situações, não poder usufruí-la é como tornar-se um morto-vivo, individual e coletivamente. Quando algumas pessoas chegam ao ponto de subtrair aquilo que é essencial ao corpo, que é o próprio alimento, estão usando o que lhes resta para apontar para essa morte social anterior.
A palavra é tão importante quanto o pão. Há outros alimentos que são vitais, a que chamamos de direitos humanos, que incluem a liberdade de expressar opinião, a liberdade de divergir. O direito de não ser tiranizado. Ainda que a greve de fome seja um ato extremo, muitos encontram nela a última forma de protesto. Por meio dela encerraram-se injustiças, salvaram-se vidas e despertaram-se a consciência e a solidariedade. Historicamente ganhou destaque mundial com Gandhi e sua batalha contra a opressão colonial inglesa na Índia.
Embora meus códigos pessoais e religiosos sejam contrários à ideia de dispor da vida, não há como desconsiderar sua semelhança com o sacrifício de tantos mártires da humanidade que, em defesa de seus ideais e causas, chegaram ao extremo de perder a própria vida.
Para G. K. Chesterton, o mártir se preocupa tanto com alguma coisa além de si mesmo que se esquece de sua vida pessoal. Em suas palavras, o mártir é um portador de princípios e atitudes nobres "porque morre para que alguma coisa viva".
Nesse caso, o sacrifício acaba desencadeando um processo inescapável de interação, de corresponsabilidade, não só pela vida de uma pessoa, mas pela sobrevivência de valores basilares pactuados pela humanidade. É por isso que a política da não ingerência de um país nos assuntos internos de outro não pode significar a relativização de certos valores, mesmo que defendê-los possa nos criar alguns incômodos. Igualmente inaceitável é desqualificar o expediente e quem está expondo a ferida.
Uma forma de ser respeitoso e solidário é, às vezes, mostrar que nem sempre aqueles que são objeto de nossa lealdade estão certos. Nossa opinião sincera é também uma forma de lealdade.
Quando as contradições são empurradas para debaixo do tapete, em nome de quaisquer alinhamentos incondicionais, não existe parceria, e sim uma relação empobrecida de assimilação. Nesse caso, a cumplicidade mata, por inanição, a coragem para mudar e tornar o mundo melhor, onde quer que isso se coloque como desafio.

contatomarinasilva@uol.com.br

MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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