São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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ANTONIO DELFIM NETTO

A distorção não percebida

Em condições institucionalmente adequadas (propriedade privada bem definida, rigorosa observância dos contratos, liberdade de escolha, agentes atomizados etc.), o mais eficiente sistema de organização produtiva descoberto pelo homem é o "mercado". Nele, oferta e procura de bens e serviços encontram-se livremente e dão origem às relações de troca (os preços relativos) entre si. É possível demonstrar, por exemplo (com algumas hipóteses heróicas e uma razoável dose de matemática), que tais preços determinam um nível de produção e de consumo "ótimos", isto é, a partir do qual ninguém pode ver melhorada sua situação sem prejudicar a situação de outro (é o que se chama de ótimo paretiano).
A relevância prática da demonstração é discutível, mas ela sugere a intuição de que, quanto mais competitivo for o "mercado", mais ele se aproximará do modelo. É isso, por exemplo, que leva os economistas (quando se restringe o objetivo da sociedade à eficiência produtiva) a preferirem um mercado de trabalho menos regulado. É o mesmo raciocínio que leva os economistas à condenação de qualquer interferência nos preços relativos -como é o caso, por exemplo, do sistema tributário baseado em impostos em cascata, como a CPMF, o PIS e o Cofins. O mesmo acontece com os subsídios à produção, à exportação ou ao consumo, que, de uma forma ou de outra, se fazem alterando os preços relativos e, portanto, desviando a economia do seu "ótimo". A intuição sugere também que o "mercado" tenha a ver com a eficiência. Ele pouco se importa com a distribuição de renda, que é claramente um problema político, como já sabia Stuart Mill antes de Marx!
Um ponto interessante em relação à vigilância de alguns economistas quanto aos inconvenientes que acompanham as distorções introduzidas nos preços relativos é que eles não tiveram a percepção da gravíssima distorção introduzida pela valorização da taxa de câmbio real. Era divertido ver algumas autoridades (e os comentaristas econômicos por elas inspirados) criticarem duramente qualquer tentativa de alteração tarifária (porque modificariam os "preços relativos de equilíbrio") e, ao mesmo tempo, defenderem o câmbio valorizado. Como vimos há poucos dias, alguns até hoje não entenderam a contradição. Não perceberam que a valorização era, apenas, uma tarifa assimétrica e, portanto, alterava os "preços relativos" dos bens: estimulava o consumo dos importados e desestimulava a produção dos exportáveis. As tarifas em geral desestimulam a ambas, porque um imposto sobre a importação é um imposto sobre a exportação. Essa distorção obrigava, além disso, a outra no mercado financeiro: era preciso remunerar mais fortemente o investidor estrangeiro do que o nacional, sem o que o financiamento do déficit em conta corrente seria impossível.
É necessário, portanto, olhar com muito cuidado e comprar por quanto valem, de fato, os argumentos estéticos que condenam qualquer intervenção na economia com base num modelo que às vezes nem os seus adoradores entendem direito.


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br



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