São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 2000


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Nova esquerda social-liberal em Berlim


A nova esquerda é liberal, mas é também social porque está disposta a arriscar a ordem em nome da justiça social


LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

A reunião de 14 chefes de governo social-democratas, em Berlim, no início de junho, foi um passo além da reunião de Florença. Naquela, pela primeira vez na história, os governantes de seis países em que há governos de esquerda ou progressistas reuniram-se para debater valores e objetivos comuns. Nesta, o número de chefes de governo aumentou para 14, mas o critério foi o mesmo -ser social-democrata, fazer parte da nova esquerda-, de forma que não estavam presentes dirigentes de grandes países democráticos, como Japão, Espanha e Índia.
Na reunião de Berlim não se falou em socialismo, mas o centro do debate dos que ali se reuniram, inclusive do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi definir em termos objetivos o que significa ser um governo de esquerda moderna no século 21, no mundo globalizado da nova economia, da sociedade do conhecimento e da informação.
A proposta da esquerda clássica era substituir o capitalismo pelo socialismo: substituí-lo de uma forma revolucionaria em um primeiro momento, gradualmente na versão social-democrata original do início do século. Mas nos dois casos o socialismo era definido como a economia planejada em que a propriedade dos meios de produção fora abolida. Através de todo o século essa visão foi sendo questionada, seja em razão do autoritarismo e do afinal colapso da experiência comunista, seja pela prática bem-sucedida dos partidos social-democratas europeus em construir sociedades mais desenvolvidas e mais justas.
Ainda nos anos 30 a esquerda começou a pensar no plano teórico em um socialismo de mercado ou em um socialismo liberal. Já nos anos 70 os partidos social-democratas, sem abandonar a idéia do socialismo, passavam a entendê-lo como uma economia que continua de mercado, mas supera o capitalismo e se torna justa do ponto de visa social porque passa a assegurar a igualdade de oportunidade. Sem considerar os escandinavos, que sempre adotaram essa posição, o primeiro partido no poder a adotá-la foi o Partido Socialista alemão, com Helmut Schmidt no governo, ainda nos anos 70; depois foi o governo de Felipe González, na Espanha, em 1980; em seguida, o segundo governo François Mitterrand, na França, em 1983, com Laurent Fabius como primeiro-ministro. Em 1997 temos afinal a nova esquerda assumindo o poder na Inglaterra, com Tony Blair.
Blair, entretanto, traz uma novidade. Não apenas um nome para o movimento, Terceira Via, ou o "novo trabalhismo", mas também um conjunto de idéias bem-estruturado, que terá como principal responsável um notável sociólogo, Anthony Giddens. Com Blair, Giddens e toda uma equipe de intelectuais e políticos, a nova esquerda, que na França tivera em Rocard seu pioneiro teórico e prático, ganha afinal consistência ideológica.
A nova esquerda, que se reuniu em Florença e em Berlim, quer uma economia de mercado, mas uma sociedade de iguais. Acredita que um mercado verdadeiramente livre e o acesso universal e gratuito à educação devem levar à igualdade de oportunidade. Que um sistema de segurança social, orientado na direção de uma renda mínima, deve levar à eliminação da pobreza.
A nova esquerda é liberal porque acredita no mercado e na democracia, mas é também social porque está disposta a arriscar a ordem em nome da justiça social, porque vê na liberdade expressa em uma democracia que se aprofunda e se radicaliza o caminho mais seguro para o socialismo democrático. Por isso, embora eu saiba muito bem que no passado liberalismo e socialismo foram vistos como opostos, os socialistas confrontando os liberais, considero hoje legítimo afirmar que a esquerda moderna é socialista e liberal.
Parte dos dirigentes da nova esquerda preferem não falar em socialismo porque o termo ainda possui conotações desfavoráveis em muitos países devido ao seu anterior comprometimento com o estatismo. E porque o socialismo almejado, embora não seja uma utopia, só será alcançado depois de uma longa caminhada. Nos países desenvolvidos, porém, principalmente nos europeus, passos importantes já foram dados nessa direção. Graças ao acesso universal à educação e à saúde, a igualdade não está mais tão distante.
A nova esquerda é uma resposta às profundas mudanças que ocorreram no mundo nos últimos 50 anos. Há ainda uma esquerda clássica, que não soube compreender plenamente essas mudanças nem ver alternativas, limitando-se a denunciar as injustiças que todos conhecemos e a acusar a nova esquerda de "neoliberal".
A ampliação do conceito de neoliberalismo, nele incluindo todas as reformas orientadas para o mercado, é uma atitude inconsequente, que rouba a seus autores uma estratégia efetiva de como governar países que além de mais justos precisam ser mais competitivos.
Em Berlim ficou muito claro que as reformas são neoliberais quando são tentativas de reduzir o Estado ao mínimo, de privatizar a previdência social geral, de eliminar a gratuidade da saúde e da educação básica. São progressistas ou de esquerda se seu objetivo for relegitimar e reconstruir o Estado.
A esquerda clássica confunde neoliberalismo, que é uma ideologia, com globalização, que é um fenômeno real: a integração em nível mundial da produção e do sistema financeiro; a incorporação ao mercado global de todos os países. Ao fazer essa confusão, a esquerda clássica protesta contra a perda de autonomia dos Estados nacionais que a globalização teria provocado.
Ora, a perda da relevância do Estado e a perda de autonomia dos Estados nacionais é uma tese de direita, é uma ideologia neoliberal, que a esquerda clássica ingenuamente subscreve. Chamo essa ideologia de "globalismo" -a versão moderna do cosmopolitismo ou da falta de consciência nacional.
Na verdade a perda de autonomia dos países devido à globalização, ainda que tenha ocorrido, foi muito menor do que se afirma. Certamente a crise fiscal de seus Estados, que ocorreu nos últimos 20 anos, representou dano muito maior à autonomia do Estado, à sua capacidade de compensar os desequilíbrios sociais provocados pela globalização.
Em Berlim, nas intervenções que fizeram chefes de governo progressistas, ficou claro que a relegitimação do Estado nos países desenvolvidos e sua reconstrução nos países em desenvolvimento são possíveis e necessárias. É o programa principal da nova esquerda para contrabalançar a cegueira do mercado.
Reformas que garantam um Estado sadio no plano financeiro, um mercado livre de monopólios e investimentos públicos em capital humano e na capacitação da competitividade das empresas nacionais são o caminho proposto pela social-democracia para garantir o acesso à nova economia e, mais amplamente, ao desenvolvimento com igualdade de oportunidade.
O presidente Fernando Henrique Cardoso, o presidente Ricardo Lagos e o presidente De la Rúa, em suas intervenções, concordaram com essas idéias, mas salientaram o caráter particular das economias em desenvolvimento, onde a pobreza é muito maior, e a injustiça, muito mais presente. E onde, além da dívida interna de cada Estado, que os onera e fragiliza, temos uma dívida externa de cada país, que os coloca em permanente risco nos instáveis mercados financeiros internacionais.
Nenhum dos três presidentes que ali representavam os países em desenvolvimento pediu ajuda aos demais. Salientaram, apenas, que há uma solidariedade que une todas as nações. Uma solidariedade, ou uma interdependência, que aumentou à medida que se aprofundava a globalização.
Por outro lado, na medida em que estes países estão ainda construindo seus Estados nacionais -coisa já há muito realizada nos países ricos-, não basta ao seus governantes pensar em uma política democrática social e liberal. É preciso também considerar a necessidade de implantar uma política do interesse nacional, que os países ricos já adotam há muito para si próprios, enquanto suas elites conservadoras desenvolvem uma ideologia globalista para uso externo. Os três presidentes latino-americanos não colocaram o problema nesses termos, mas deixaram claro que temos problemas diferentes e mais graves, que exigem soluções específicas.
A reunião de Berlim representou um passo adiante em relação à de Florença não apenas porque envolveu maior número de países e teve um discurso mais claramente de esquerda. Também porque decidiu-se, a partir de uma proposta do presidente Bill Clinton, que se discutissem questões concretas, como a pobreza, a mudança de clima, o comércio, a governança global. E porque essa proposta foi operacionalizada pela sugestão do primeiro-ministro português, Antônio Guterres, imediatamente aceita, de se levarem as conclusões dessa e das futuras reuniões de governos progressistas para os fóruns internacionais formais, a começar pelo G-8.
A reunião de Berlim foi histórica porque demonstrou que os dirigentes políticos da nova esquerda progressista compartilham objetivos de justiça social e estratégias de como alcançá-los. Mas foi também realista ao não se propor mais do que pode alcançar, que é o fortalecimento das idéias social-democratas modernas em cada país.
A aposta dos dirigentes da nova esquerda presentes é a de que governos progressistas estão hoje mais bem equipados que governos conservadores para combinar a eficiência do mercado com a justiça que só o Estado pode garantir. Que hoje, mais do que nunca, os socialistas democráticos são capazes de governar o capitalismo mais competentemente do que os capitalistas. Mas que esse é um problema que cada país terá de resolver por sua própria conta. Que nós mesmos teremos que decidir como fortalecer o Estado, como garantir os fundamentos macroeconômicos, como tornar os mercados mais livres, como encontrar recursos para investir mais na educação e na saúde e como eliminar as situações de pobreza extrema. Esses são terríveis desafios!


Luiz Carlos Bresser Pereira, 65, é professor titular de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (governo FHC), além de da Fazenda (governo Sarney). É autor, entre outros livros, de "Reforma do Estado para a Cidadania" (editora 34).



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