São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Museus naturais em condições precárias

MIGUEL TREFAUT RODRIGUES e HUSSAM ZAHER


Parte influente da própria comunidade científica ainda não se conscientizou do papel estratégico que as coleções têm para o Brasil


O incêndio que atingiu as coleções de serpentes e artrópodes do Instituto Butantan revelou ao país as condições precárias em que se encontra seu acervo biológico.
Mais preocupante foi a constatação de que uma parte influente da própria comunidade científica ainda não se conscientizou do papel estratégico desempenhado por essas coleções no desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil -país detentor da maior diversidade de espécies de plantas, animais e micro-organismos do planeta.
Não se trata de avaliar a qualidade da ciência produzida em um dos nossos institutos tecnológicos ou os parâmetros técnicos que regem a manutenção de exemplares mortos, mas, sim, a perda de autonomia científica e de credibilidade que as coleções propiciavam.
Acervos desse tipo são de fundamental importância para o estudo da biodiversidade, por documentarem o processo de criação e diversificação da vida na Terra. Estima-se que o número de espécies vivas varie entre 10 e 40 milhões, das quais apenas 1,8 milhão foram descobertas e nomeadas. A desproporção entre o que se conhece e o que ainda resta por descobrir constitui um dos maiores desafios da ciência da biodiversidade, o que justifica a criação de acervos biológicos.
Nos últimos anos, as coleções científicas passaram a ser utilizadas como ferramentas essenciais de gestão ambiental e como base para modelagens preditivas. A criação, na ONU, da Convenção sobre a Diversidade Biológica procura reverter os impactos nefastos produzidos pela perda global de biodiversidade, destacando a função central das coleções no gerenciamento dos recursos naturais.
Esse novo olhar sobre as velhas coleções valoriza-as em seu papel menos compreendido, o de assegurar a qualidade de vida de nossa espécie. Hoje, contamos com importantes conquistas da genômica, mas ainda estamos distantes do dia em que o caminho entre os genes e o indivíduo terá sido totalmente desvendado.
Até lá, é fundamental que continuemos guardando espécimes-testemunhos da existência de uma infinidade de processos bióticos e abióticos, que podem ser críticos para o destino da humanidade, mas que ainda somos incapazes de compreender.
O incêndio do Butantan revela que não dedicamos a atenção devida a tão valioso patrimônio. Perdemos coleções centenárias, mas podemos sofrer perdas maiores. Acervos mais expressivos, como os do Museu de Zoologia da USP, do Museu Goeldi e do Museu Nacional estão em situação similar de risco. É imprescindível que o poder público reconheça o valor desses acervos e que as instituições que os abrigam tenham clareza de suas responsabilidades em preservá-los.
Disponibilizar recursos para a proteção das coleções científicas em prédios seguros, a exemplo do que se faz na Europa e na América do Norte, representaria um ato de maturidade exemplar por parte de um país que busca credibilidade internacional.

MIGUEL TREFAUT RODRIGUES é professor do Instituto de Biociências da USP.
HUSSAM ZAHER é diretor do Museu de Zoologia da USP.


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