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JOSÉ SARNEY
Complexo de Cachoeira
Carlos Lacerda , em famoso
discurso, ao tempo em que os discursos ainda tinham nomes, com o título de "Corrida dos Touros Embolados", falou sobre a arte do debate no
Parlamento. Dizia ele que, em tempos
de paixão e crise, todos eram possuídos do desejo de brilhar e, então, passavam ao exercício de fingir. Depois
de esgotar o tema, virou-se para os adversários que o atacavam com rudeza
e afirmou: "Aqui até o ódio é fingido".
Nós somos a primeira geração da
humanidade que assiste na hora e na
televisão a tudo o que acontece. Esse
instrumento mostra a alma dos falantes, não somente seus gestos. É, sem
dúvida, um tempo transformado.
Nossos antepassados sabiam por ouvir dizer e ler, nós sabemos por ouvir e
ver. O conde Afonso Celso, filho de
Ouro Preto, um dos mais brilhantes
escritores do nosso país, passou pelo
Parlamento e deixou, num pequeno
livro, "Oito Anos de Parlamento", algumas impressões do que era viver no
Congresso. Descreve tudo o que viu,
analisa os homens a que assistiu falar,
Rui Barbosa, Andrade Figueira, Joaquim Nabuco, Gomes de Castro (meu
conterrâneo), e finaliza comentando
um tipo de parlamentar que ele chama "da véspera". "Finge a verdade, representa a perturbação, engana o público, a Câmara, o estenógrafo e a si
próprio."
E continua, cáustico: "O político que
está sempre a falar de sua probidade
faz desconfiar que é tratante; da sua vigilância, que é preguiçoso; da sua gratidão, que é ingrato; da sua coragem,
que é covarde". No final, com sua experiência vivida, ensinava: "Tenha
sempre diante dos olhos a grande e veneranda imagem do povo".
Falo dessas coisas para alertar sobre
o perigo dos espetáculos nas CPIs. É
necessário transmitir e dar para a população a certeza de que realmente se
investiga e se deseja punir os corruptos, e não brilhar à custa deles.
O Parlamento, com todas as suas
mazelas e defeitos, é a maior de todas
as instituições políticas criadas pela
humanidade. Ele é o coração do povo.
Ali pode-se questionar tudo, até o próprio Parlamento. Não é por acaso que
em frente a ele se realizam os protestos, as demandas, os apelos, as pressões. Por isso mesmo diz-se que é melhor o pior Parlamento do que Parlamento nenhum. Não devemos julgá-lo pela realização imperfeita dos seus
valores. Devemos -e essa será tarefa
permanente- expurgá-lo dos que
são indignos de a ele pertencer. Ele é a
própria democracia.
O Parlamento tem a finalidade de
fiscalizar e de controlar o Executivo e
tudo. Para isso, tem os discursos -o
mais simples de todos os seus instrumentos-, os decretos legislativos, as
comissões permanentes, as resoluções, o acompanhamento, os pedidos
de informação e as comissões de inquérito. Para que tenham efeito, afaste-se a política menor do seu seio, a
vaidade, o fingimento, a paixão. Vamos apurar os fatos, buscar a verdade,
punir, adotar procedimentos para que
os delitos não se repitam. Não se finja
o ódio, porque ele muitas vezes é aquilo que dizia o provérbio judeu: "A inveja alimenta o ódio". E lembre-se o
sentimento de Bertrand Russel e de
Mencken ("The Vintage", 1989):
"Mostre-me um puritano e eu lhe
mostrarei um filho daquela".
A ética e a moral não combinam
com o teatro nem com o fingimento.
Di Cavalcanti disse-me, uma vez, sobre determinado político: "Não pode
ir a enterro, porque quer ser o defunto
para ser alvo das homenagens".
É isso aí: complexo de Cachoeira.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
@ - jose-sarney@uol.com.br
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