São Paulo, terça-feira, 15 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Órfãos de Freud

ALDO PEREIRA


A obra de Sigmund Freud contém muito de original e verdadeiro. Mas o original não é verdadeiro; e o verdadeiro não é original

A OBRA de Sigmund Freud (1856-1939) contém muito de original e verdadeiro. Mas o original não é verdadeiro; e o verdadeiro não é original. (Você dirá que tampouco essa glosa é original, já que adapta epigrama atribuído ao dicionarista, poeta e crítico inglês Samuel Johnson (1709-1784). Mas acolha como atenuante que a citação é provavelmente apócrifa: não figura em escritos nem de Johnson nem de contemporâneos seus.) Exemplo de verdadeiro, na psicanálise, é o conceito de inconsciente.
Verdadeiro, mas não original: Freud ainda era adolescente quando o filósofo-psicólogo americano William James (1842-1910) analisou o tema. E quando saiu, em 1870, a primeira das várias edições de "Filosofia do Inconsciente", influente obra, em três volumes, do filósofo alemão Eduard von Hartmann (1842-1906).
Quanto a falsidades, estas abrangem todo o resto, desde a histeria ("doença mental" que nenhum psicanalista ousa mais diagnosticar) até todos os "complexos" e "neuroses" que a Associação Psiquiátrica Americana já excluiu de seu "Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais". Essa decisão, tomada em 1980, causou progressivo declínio na formação de psicanalistas americanos.
Os freudianos acharam solícito socorro, porém, na teoria literária pós-modernista francesa.
Desencantados com o comunismo, intelectuais como Jacques-Marie-Émile Lacan (1901-1981), Jacques Derrida (1930-2004) e Jean Baudrillard (1929-2007) converteram-se a outra religião laica, o pós-modernismo. Logo cada um deles, "malgré lui", se viu oráculo hermético do pessoal da "nova era" (cultura "alternativa" de crenças e práticas mágicas, orientalistas, esotéricas, naturalistas, ocultistas etc.). Vaias e sarcasmo partidos da ala das ciências exatas não inibiram essa parada do orgulho acadêmico.
Mas o escárnio persiste, embora escarnecer da psicanálise abra questões de responsabilidade. Por que inibir a confiança de quem busca socorro para suas aflições? Por que afrontar carreiras e reputações advindas de paciente estudo e laboriosa prática?
Ocorrem aí, porém, dois contrapontos éticos. Primeiro, o de a psicanálise, como sedutora teoria pseudocientífica da personalidade, ter descarrilado por quase um século a investigação científica da natureza humana. Segundo, o de a eficácia da psicanálise como terapia ser inverificável: ao cabo de meses ou anos de tratamento, como atribuir eventual melhora do paciente a ela, e não a tantas outras experiências vividas por ele no período?
Hoje, a medicina busca algum modo discreto de enjeitar a psicanálise, mais ou menos como alguém que espera desvincular-se de inconfessável pecadilho do passado. Tal repúdio confere drama e comédia à partilha do legado intelectual de Freud. Que órfãos se credenciam como herdeiros legítimos do espólio? Qual das entidades pretensamente representativas é guardiã do credo autêntico?
Ateu, Freud nunca se viu profeta fundador duma religião secular. (Isso apesar da história de anátemas, cismas, heresias e apostasias da psicanálise.) Muito menos teria ele admitido congruência entre psicanálise e crença mística. Que diria, então, do sincretismo que ocorre no Brasil entre psicanálise e seitas cristãs, sejam elas católicas, sejam evangélicas?
Hoje, psicanalistas diplomados em medicina e filiados a alguma das muitas associações do ramo se vêem concorrentes de profissionais formados por entidades como a Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil. Após curso de dois anos, você pode sair psicanalista clínico pela SPOB. Colega, imagine, da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (turma de 2003).
O Instituto de Educação Superior e Pesquisas Avançadas oferece cursos "à distância" de psicanálise clínica livre; bacharel em psicanálise clínica; licenciatura em psicanálise clínica; pós em psicanálise clínica; mestrado em psicanálise clínica; e doutorado em psicanálise clínica. Ou, se preferir, bacharel em libertação; pós em cura interior; pós em batalha espiritual; pós em quebra de maldição; mestrado em libertação; e doutorado em teologia ministerial.
Psicanalistas evangélicos se habilitam a induzir indistintamente catarse ou exorcismo sem confundir neurose com possessão demoníaca. Um deles sugere que, para obter diagnóstico diferencial, o terapeuta encare o paciente e exclame: "Jesus!". Se incorporado, o demônio se manifestará num espasmo furioso do possesso.
Verdadeiro? Discuta-se. Original?
Não se discute.


ALDO PEREIRA , 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha. aldopereira.argumento@uol.com.br

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