São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um ano depois

CELSO LAFER



A posição brasileira é clara: a resposta aos desafios atuais é mais multilateralismo, e não menos

Qual o significado do primeiro aniversário dos ataques terroristas, nos EUA, que marcaram o dia 11 de setembro? Além da dor e do sofrimento causados pela perda brutal de cerca de 3.000 vidas inocentes de inúmeras nacionalidades, esses atos trouxeram profundas implicações no plano das relações entre os Estados, em particular no campo da segurança internacional.
Com efeito, embora o terrorismo não constitua um fenômeno novo, seu emprego na escala e nas condições verificadas em 11 de setembro contra o principal centro de poder do mundo criou uma nova situação.
Para fazer frente a um inimigo difuso, mesmo que se lhe tenha imputado o rosto de Osama bin Laden, seguiu-se uma reação igualmente difusa, ainda que inicialmente concentrada nas ações militares levadas a cabo pelos EUA contra bases terroristas no Afeganistão. Nestas os EUA dispuseram de ampla latitude de ação, decorrente não só de sua superioridade militar, mas também do abrangente escopo legitimador para tais ações, autorizadas pela linguagem das resoluções aprovadas pelos órgãos máximos da ONU: a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança.
Passada a fase mais aguda das operações militares dos EUA no Afeganistão -que contaram com expressiva solidariedade internacional e o relevante apoio logístico e de informações de uma multiplicidade de Estados-, o mundo permanece, no que diz respeito aos temas internacionais de segurança, envolto num "tempo de tormenta e vento esquivo ("Lusíadas", 5, 18)". Vivemos uma situação-limite entre a paz e a guerra, e os atentados de 11 de setembro, ao provocarem um deslocamento do eixo diplomático, são emblemáticos de transformações fundamentais que se operam no plano internacional.
Desde o final da Guerra Fria, o mundo opera com base em duas lógicas contraditórias: a da globalização e a da fragmentação. Em ambos os processos, verifica-se tanto maior proeminência relativa de atores não-governamentais "vis-à-vis" os governamentais, quanto maior capacidade de ação por parte daqueles de operarem em redes -uma das consequências da globalização.
Estas, no entanto, podem servir quer ao bem -para melhorar a educação, promover o desenvolvimento sustentável e o respeito aos direitos humanos-, quer ao mal, como o terrorismo, o tráfico de drogas, de armas, a lavagem de dinheiro. A própria estrutura das organizações terroristas modificou-se: as entidades altamente hierarquizadas nos anos 70 e 80, como Al Fatah, Brigadas Vermelhas, Baader-Meinhof, dão lugar hoje a grupos "ad hoc" descentralizados e operando em redes.
Para isso tem contribuído o que pode ser qualificado como a fragmentação das cadeias de poder, que coloca em questão o monopólio do uso legal da força como clássico atributo do Estado no seu âmbito territorial. É neste contexto que se situa o fenômeno da desagregação e secessão de Estados (URSS, Bálcãs) ou a perda de controle de parte de seus territórios para poderes ligados a milícias, guerrilha, terrorismo ou tráfico de drogas. O exemplo mais notório é o Afeganistão, base da Al Qaeda.
Percebe-se assim, com mais clareza, a natureza emblemática do 11 de setembro na realidade contemporânea, que coloca em questão a racionalidade dos mecanismos tradicionais da diplomacia, da política, da economia e da própria guerra. Na Primeira Guerra Mundial, cerca de 10% dos mortos eram civis; parcela que sobe para 60% na Segunda. Hoje, os civis são eles próprios alvos imediatos, não apenas no caso dos atentados aos EUA, mas também nos conflitos que opõem israelenses e palestinos, indianos e paquistaneses, ou hutus e tutsis, como no caso de Ruanda.
Como fazer frente aos piores efeitos desses movimentos? A reação inicial dos EUA, país vitimado pelos atentados, foi a do recrudescimento, nos seus governantes, de uma leitura hobbesiana-maquiavélica da realidade internacional, sobretudo no plano estratégico-militar. Daí a tendência ao solipsismo naquele país. Esta se percebe não apenas na intensidade de suas ações internacionais de prevenção e combate ao terrorismo e no debate sobre operações de guerra no Iraque, mas também em suas posições frequentemente refratárias a acordos multilaterais -como nas áreas ambiental (não-ratificação do Protocolo de Kyoto), de desarmamento (não-ratificação do Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares) ou jurídica (evitar jurisdição do Tribunal Penal Internacional sobre nacionais norte-americanos).
Pela forma de sua inserção no mundo, tradição e experiência diplomática, o Brasil tem uma leitura grociana da realidade internacional, que privilegia a gestão dos conflitos por meio do direito e da diplomacia. Para o Brasil, o 11 de setembro agravou o déficit de governança prevalecente no sistema internacional, para realçar um dos termos recorrentes suscitados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso desde o início do seu primeiro mandato. Diante desse agravamento, a posição brasileira é clara: a resposta aos desafios atuais é mais multilateralismo, e não menos.
A complexidade do mundo contemporâneo em todas as áreas, inclusive a de segurança internacional, é tão grande que nenhum ator internacional, nem o mais forte, pode, isolado e sem cooperação, encaminhar soluções. Esta é a lição, passado um ano dos atentados que chocaram o mundo.

Celso Lafer, 61, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é ministro das Relações Exteriores. Foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC) e das Relações Exteriores (governo Collor).


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