São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

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Revisitando JK

CELSO FURTADO



Juscelino perdeu o controle ao tomar conhecimento das condições impostas [pelo FMI]

Foi a seca que flagelou o Nordeste em 1958 que me aproximou do presidente Kubitschek, cujo centenário de nascimento se comemorou no último dia 12. As oposições tinham vencido as eleições na Bahia e em Pernambuco, e as tensões sociais se agravavam com a emergência das Ligas Camponesas, sob a liderança de Francisco Julião. Havia um clima de alarme, os militares pensando em intervenção federal.
Numa hábil manobra, o presidente retomou a iniciativa política, convocando os governadores e outros líderes para elaborar um plano de desenvolvimento regional, que coube a mim dirigir. O Nordeste passaria a ter a mesma prioridade que a construção de Brasília.
O único título que eu tinha era o de ser nordestino e de haver escrito um livro em que dizia ser necessário repensar o Brasil e dar outro rumo a seu desenvolvimento, considerando as disparidades regionais herdadas da época colonial.
O Nordeste não estava incluído no Plano de Metas. Mas a grande seca de 1958 pôs a nu a cruel realidade da região. O governo teve de atender com obras emergenciais a mais de 500 mil pessoas. Escândalos vieram à tona, a indústria da seca entrou em ebulição, com suas conhecidas sequelas.
Juscelino não era homem de recuar ou desanimar. Podia ser demasiado impaciente e, por isso, precipitar uma solução. Necessitava tanto ter fé em si mesmo que todo esmorecimento lhe parecia derrotismo. Dispôs-se, com firmeza, a implementar o nosso plano "Uma política de desenvolvimento para o Nordeste". Assim nasceu, em 59, a Sudene.
A lei que a aprovou trazia uma novidade de alcance constitucional: pela primeira vez praticava-se um sistema de tomada de decisões integrando os governos federal e estaduais. A fórmula jurídica embutida na lei consistiu na adesão voluntária dos governadores, que participavam dos debates pensando, em primeiro lugar, na ótica regional. Da união de todos resultou a força política do novo órgão.
Cabia, de imediato, enfrentar o calcanhar-de-aquiles do Nordeste: a produção de alimentos. Para isso, desenvolvemos a grande irrigação no São Francisco, com água abundante e energia barata. Também foi preciso estancar a transferência de recursos financeiros do Nordeste, feita pelo sistema bancário, que lá os drenava, e pelos poupadores nordestinos que investiam no Centro-Sul.
Havia, enfim, o problema do intercâmbio externo, pois o Nordeste, ao exportar para o estrangeiro, recebia um dólar subvalorizado, em razão do regime de câmbio diferencial, e em seguida comprava no Sul a preços mais altos que os do mercado internacional. Medi essa transferência e demonstrei que o Nordeste financiava, com seus parcos recursos, o sul do país. Daí a necessidade, compensatória, de uma política de investimento mais ambiciosa.
Esta foi a origem da primeira legislação de incentivos fiscais do país, elaborada por mim e enviada por JK ao Congresso. A ela se deve o surto de industrialização da região nordestina no período 1960-80. A Sudene precisava ganhar credibilidade e foi essa a sua maior conquista. Pela primeira vez, pensou-se o Nordeste como um todo, sem perder de vista que somos parte do Brasil. Quem criou e cimentou essa conquista foi o presidente Kubitschek.
Muitas foram suas realizações. Há, porém, um aspecto de sua presidência que gostaria de abordar, por ser de grande atualidade. Refiro-me às relações do governo brasileiro com o FMI.
Ao estudar o problema como funcionário das Nações Unidas, assumi posições abertas contra a ortodoxia do FMI, que ignora as diferenças qualitativas entre as estruturas dos países desenvolvidos e as dos subdesenvolvidos. Desde os anos 50, percebi que sua doutrina não era inocente, pois privilegiar os credores era uma bem camuflada manobra de dominação política. Meio século depois, um alto dirigente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de economia, chegaria a conclusão idêntica, o que leva a crer que essa perniciosa doutrina tende a ser abandonada.
O Brasil enfrentou, nos anos JK, problemas de desequilíbrio externo com saldos negativos na conta corrente da balança de pagamentos. O FMI, chamado em socorro já naquela época, preparou um relatório alarmista e receitou uma série de cortes nos gastos públicos que culminavam com a paralisação da construção de Brasília. Juscelino perdeu o controle ao tomar conhecimento das condições impostas e reagiu com palavrões. Coube a mim assessorá-lo nesse momento, pois quem o fazia, inclusive nosso embaixador em Washington, não parecia disposto a correr o risco de um confronto com os norte-americanos.
Esse episódio me convenceu de vez de que os técnicos do FMI estão longe de fundamentar seu comportamento na realidade de cada país. Negociam posições vantajosas para os credores e cedem quando lhes convém. Prova de que cedem foi como reagiram à moratória russa, nos anos 90. Prova do contrário foi como se comportaram na Argentina.
Neste momento, em que se relembra o presidente Kubitschek -que, para não comprometer um projeto nacional, fez frente às exigências descabidas do sistema financeiro internacional-, é natural que indaguemos até onde devemos ceder às pressões desse tipo exercidas atualmente sobre nosso país.

Celso Furtado, 82, economista, é membro da Comissão Mundial (ONU/Unesco). Foi ministro do Planejamento (governo João Goulart) e da Cultura (governo Sarney). É autor, entre outras obras, de "Formação Econômica do Brasil".


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