São Paulo, quarta-feira, 15 de setembro de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

Auditoria rigorosa dos mitos

Depois de anos de congelamento do "espírito de desenvolvimento", é preciso prestar atenção à delicadeza da situação que vivemos e aos riscos que corremos quando aceitamos posicionamentos dogmáticos. O terror que o crescimento econômico do segundo trimestre do ano (5,7%) produziu nos "falcões-economistas" empoleirados no sistema financeiro é um bom exemplo dos males que podem advir de tais dogmatismos.
Combinado com o crescimento de 2,7% do primeiro trimestre sobre o seu homólogo de 2003, o primeiro semestre de 2004 apontou um crescimento de 4,2%. Se o ano prosseguir seu curso normal, e se se repetirem as variações estacionais dos últimos 20 anos, não errará muito quem afirmar que o ano de 2004 provavelmente revelará um crescimento em torno de 4,8%. Por que então tanto pavor? Apenas porque desde 1992/93 não se vê um crescimento dessa magnitude sem déficits em conta corrente!
Apoiado em estatísticas extremamente duvidosas e em modelos mais do que discutíveis, o Banco Central e os "economistas-falcões" que se retroalimentam em suas "expectativas inflacionárias" crêem (do verbo crer, em qualquer coisa!) que estudos profundos, apoiados no estado da arte da última versão da teoria econômica e não rejeitados pela mais respeitável econometria, "provam" que o Brasil não pode crescer mais do que 3,5% sem criar insustentáveis tensões inflacionárias.
Na verdade, esse número é apenas uma ilusão estatística criada por métodos envolvidos em profundas ambigüidades. Como, entretanto, o "mercado" (BC, "falcões" e "tutti quanti") crê nos 3,5% e que é o "enorme crescimento" o responsável pelo desvio da meta inflacionária, ouve-se um coro ensurdecedor pedindo o "óbvio": aumentar os juros, como disse outra noite, num bem freqüentado programa de televisão, um falcãozinho do mercado posando de cientista...
As causas de estarmos perto do limite superior da "meta inflacionária" de 2004 são muitas: sua enorme ambição diante do resquício de indexação dos preços administrados, dois choques agrícolas, um tremendo choque de impostos que aumentou o custo das importações, um cavalar aumento de impostos municipais, uma ampliação lenta da base monetária, o choque do petróleo etc. Provavelmente a menor delas é o "assustador" crescimento de 4,2% do PIB no primeiro semestre.
Para cortar o crescimento anual de 4,8% para o nível de 3,5% (que o "mercado" considera virtuoso), será preciso uma manobra extremamente perigosa: reduzir o crescimento provável do segundo semestre de 5,4% para 2,8% sobre o seu homólogo do ano anterior, ou seja, cortar 1,3% do PIB anual! Um choque dessa dimensão porá a perder todo o esforço de investimento. Quem perderá tempo investindo num país que não pode crescer mais do que 3,5%?
Até agora não se provou que a economia brasileira esteja no limite da sua capacidade, e as evidências são, no mínimo, discutíveis. Uma recente pesquisa mostrou que a "capacidade produtiva" era problema para apenas 5% das pequenas e médias empresas (enquanto a "falta de demanda" era para 29% delas). Das grandes, 8% registraram o problema, mas 19% delas registraram "falta de demanda". Por que aceitar o "mito" antes de submetê-lo a uma auditoria rigorosa?


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.


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