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JOSÉ SARNEY
A menina que não era de sua mãe
Duas histórias de jovens, sem
interface, comoveram e revoltaram o Brasil. Numa, a felicidade mais
pura de um reencontro de alegria e
prazer; noutra, a tragédia, com final de
pranto e vergonha. Na primeira, o menino de Brasília que cresceu em Goiânia e, na segunda, a moça de São Paulo, para quem bem se aplicaria aquela
frase do Cristo, na condenação extrema: "Antes tu não tivesses nascido".
Todas duas, histórias de mães e pais.
Numa e noutra, o destino de pais e
duas mães no exercício do amor.
Uma, por ter achado sem haver perdido; outra, por ter perdido sem haver
desaparecido. Resta a trágica história
dos pais mortos, poupados de ver a filha que trouxeram ao mundo e que foi
capaz de levantar um sentimento
imenso de revolta e medo no país inteiro.
Revolta pela trama de tudo. Desde a
violação das leis mais puras e primeiras da vida até a brutalidade estarrecedora de uma morte que só teve mãos
de crueldade. Medo, medo de todos
nós, pais e filhos, testemunhas dessa
sublimação da violência e da possessão, sem razão visível para justificar a
aniquilação total da razão e a dissolução da alma, dos sentimentos, da
consciência como atributo da vida, o
saber que existe e logo é. O ser humano? A droga? É tudo e é nada. Estamos
no mundo dos impossíveis.
Desfilaram pelos meios de comunicação educadores, psicólogos, psiquiatras, analistas e filósofos em busca
de explicar o inconcebível. Muitos bateram na falta de controle sobre os filhos, donos de suas vontades, sem limites. Mas estamos lidando com a
ponta de um iceberg desconhecido
que nos amedronta. Deus queira tratar-se de uma abominável e única
mutação de conduta, sem nenhuma
ligação com o afeto e o amor. Que seja
a evidência de até onde pode levar a
droga. Pensando assim, nossa revolta
tem cura. Pensando diferente, passamos a ter medo do destino de viver.
O sentimento de pais e filhos lida
com o barro do afeto e do amor. A
compreensão da conduta dos filhos
jamais pode importar em culpa pela
extrapolação dos limites aceitáveis da
convivência no lar. Ninguém pode
pensar na educação de um filho temendo ser por ele um dia assassinado.
Uma vez, o filho de um amigo meu,
desses da fase áurea da época da contestação dos anos 60, quando repreendido, replicou com a frase da
época: "Eu não pedi para nascer", numa alusão ao fato de que ele era culpa
de seus pais. Foi revidado: "Também
teus pais não escolheram o filho que
iam ter". Os pais não podem ser culpados pelos filhos que tiveram nem os
filhos pelos pais que têm. Esse julgamento não está inserido nas relações
de nascimento. Os filhos e os pais são
e serão sempre, filhos e pais até o fim
dos tempos, responsáveis pela continuidade da espécie, pela eternidade
de nossas almas. Cada um sendo um,
com sua identidade, são todos. Deus
mandou que se amasse "o próximo".
E o primeiro próximo são os filhos.
Até onde, e isso não li em nenhum
lugar, está a avaliação da falta do sentimento religioso dentro das nossas
casas? Deus está sendo expulso dos lares. E, se vivêssemos na Idade Média,
diríamos que o Diabo está entrando.
A melhor coisa é tentar apagar de
nossa memória essa tragédia. Ela não
pode ter existido. A humanidade é
boa, os filhos são bênção de Deus.
Mas a morte de Manfred e Marisia
dói. E aperta.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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