São Paulo, sexta-feira, 15 de novembro de 2002

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JOSÉ SARNEY

A menina que não era de sua mãe

Duas histórias de jovens, sem interface, comoveram e revoltaram o Brasil. Numa, a felicidade mais pura de um reencontro de alegria e prazer; noutra, a tragédia, com final de pranto e vergonha. Na primeira, o menino de Brasília que cresceu em Goiânia e, na segunda, a moça de São Paulo, para quem bem se aplicaria aquela frase do Cristo, na condenação extrema: "Antes tu não tivesses nascido".
Todas duas, histórias de mães e pais. Numa e noutra, o destino de pais e duas mães no exercício do amor. Uma, por ter achado sem haver perdido; outra, por ter perdido sem haver desaparecido. Resta a trágica história dos pais mortos, poupados de ver a filha que trouxeram ao mundo e que foi capaz de levantar um sentimento imenso de revolta e medo no país inteiro.
Revolta pela trama de tudo. Desde a violação das leis mais puras e primeiras da vida até a brutalidade estarrecedora de uma morte que só teve mãos de crueldade. Medo, medo de todos nós, pais e filhos, testemunhas dessa sublimação da violência e da possessão, sem razão visível para justificar a aniquilação total da razão e a dissolução da alma, dos sentimentos, da consciência como atributo da vida, o saber que existe e logo é. O ser humano? A droga? É tudo e é nada. Estamos no mundo dos impossíveis.
Desfilaram pelos meios de comunicação educadores, psicólogos, psiquiatras, analistas e filósofos em busca de explicar o inconcebível. Muitos bateram na falta de controle sobre os filhos, donos de suas vontades, sem limites. Mas estamos lidando com a ponta de um iceberg desconhecido que nos amedronta. Deus queira tratar-se de uma abominável e única mutação de conduta, sem nenhuma ligação com o afeto e o amor. Que seja a evidência de até onde pode levar a droga. Pensando assim, nossa revolta tem cura. Pensando diferente, passamos a ter medo do destino de viver.
O sentimento de pais e filhos lida com o barro do afeto e do amor. A compreensão da conduta dos filhos jamais pode importar em culpa pela extrapolação dos limites aceitáveis da convivência no lar. Ninguém pode pensar na educação de um filho temendo ser por ele um dia assassinado.
Uma vez, o filho de um amigo meu, desses da fase áurea da época da contestação dos anos 60, quando repreendido, replicou com a frase da época: "Eu não pedi para nascer", numa alusão ao fato de que ele era culpa de seus pais. Foi revidado: "Também teus pais não escolheram o filho que iam ter". Os pais não podem ser culpados pelos filhos que tiveram nem os filhos pelos pais que têm. Esse julgamento não está inserido nas relações de nascimento. Os filhos e os pais são e serão sempre, filhos e pais até o fim dos tempos, responsáveis pela continuidade da espécie, pela eternidade de nossas almas. Cada um sendo um, com sua identidade, são todos. Deus mandou que se amasse "o próximo". E o primeiro próximo são os filhos.
Até onde, e isso não li em nenhum lugar, está a avaliação da falta do sentimento religioso dentro das nossas casas? Deus está sendo expulso dos lares. E, se vivêssemos na Idade Média, diríamos que o Diabo está entrando.
A melhor coisa é tentar apagar de nossa memória essa tragédia. Ela não pode ter existido. A humanidade é boa, os filhos são bênção de Deus.
Mas a morte de Manfred e Marisia dói. E aperta.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.

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