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DEMÉTRIO MAGNOLI
Utilidades do
anti-semitismo
"Alguns países europeus insistem em dizer que, durante a
Segunda Guerra Mundial, Hitler queimou milhões de judeus. Qualquer historiador, comentarista ou cientista
que duvida disso é detido ou condenado." O presidente do Irã, Mahmoud
Ahmadinejad, reproduziu o que circula, em grande parte do mundo árabe-muçulmano, como sabedoria convencional e, na Arábia Saudita, por
exemplo, é ensinado às crianças nas
escolas. Mas o anti-semitismo não
surgiu, historicamente, entre os muçulmanos. Ele é um fruto da imposição do cristianismo como religião imperial de Roma, amadurecido nos
tempos medievais sob os auspícios da
Igreja Católica e com base na acusação
de que os judeus, como povo, foram
responsáveis pela crucificação de
Cristo.
O anti-semitismo contemporâneo é
uma derivação e uma radical reinterpretação do anti-semitismo religioso.
Seus textos clássicos, como "Biarritz",
romance vulgar publicado em 1868,
sob pseudônimo, por um funcionário
dos correios prussianos, e "Os protocolos dos sábios de Sião", célebre falsificação fabricada pelos serviços secretos czaristas no fim do século 19,
são narrativas de uma conjuração judaica mundial. Neles, e em muitos outros, os temas medievais do "judeu errante" e do "judeu usurário" configuram uma nova imagem, que será
apropriada pelos nacionalismos europeus.
Essa imagem é a do "judeu sem pátria", o eterno estrangeiro, portanto
inimigo, que desempenha função instrumental na arregimentação das
massas em torno do poder. Depois, o
"judeu sem pátria" transfigurou-se
facilmente no "judeu bolchevique",
na mitologia da direita nacionalista e
no delírio nazista. Mais estranho é
que, apesar do diagnóstico do socialista francês August Bebel ("o anti-semitismo é o socialismo dos imbecis"),
a demonologia dos judeus tenha contaminado também o pensamento de
esquerda do século 20.
Estranho, mas nem tanto. O anti-semitismo difundiu-se entre a esquerda
quando a URSS converteu-se ao patriotismo e atingiu seu zênite no momento em que Stalin deflagrou a campanha anti-semita de 1948-53, destinada a extirpar os "cosmopolitas sem
raízes". O fio desse novelo continua a
se desenrolar, agora pelas mãos de
uma esquerda inculta que, destituída
de programa ou idéias, cultiva um
rancor cego contra a globalização, o
imperialismo, os EUA e Israel, que lhe
parecem sinônimos, e deixa-se embevecer pelo terror jihadista e pelos homens-bomba na Palestina.
O anti-semitismo tem mil e uma utilidades. Serve, até mesmo, por oposição, aos governos israelenses confrontados por acusações de violação
dos tratados que regulam o tratamento de civis sob ocupação e de uso de
métodos de tortura de prisioneiros.
Numa macabra manipulação utilitária da memória do Holocausto, a denúncia desses atos é, quase sempre,
classificada como manifestação de
anti-semitismo.
A técnica, conduzida às suas possibilidades extremas, não poupa judeus. Meron Benvenisti, que foi vice-prefeito de Jerusalém e é colunista do
"Haaretz", tornou-se "anti-semita"
desde que escreveu "Sacred landscape", uma obra histórica rigorosa sobre a supressão da paisagem árabe em
Israel. O maestro Daniel Barenboim,
criador, com Edward Said, de uma orquestra palestino-israelense, foi acoimado de "anti-semita" desde que, em
agosto, recusou uma entrevista à rádio do exército de Israel.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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