São Paulo, quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Utilidades do anti-semitismo

"Alguns países europeus insistem em dizer que, durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler queimou milhões de judeus. Qualquer historiador, comentarista ou cientista que duvida disso é detido ou condenado." O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, reproduziu o que circula, em grande parte do mundo árabe-muçulmano, como sabedoria convencional e, na Arábia Saudita, por exemplo, é ensinado às crianças nas escolas. Mas o anti-semitismo não surgiu, historicamente, entre os muçulmanos. Ele é um fruto da imposição do cristianismo como religião imperial de Roma, amadurecido nos tempos medievais sob os auspícios da Igreja Católica e com base na acusação de que os judeus, como povo, foram responsáveis pela crucificação de Cristo.
O anti-semitismo contemporâneo é uma derivação e uma radical reinterpretação do anti-semitismo religioso. Seus textos clássicos, como "Biarritz", romance vulgar publicado em 1868, sob pseudônimo, por um funcionário dos correios prussianos, e "Os protocolos dos sábios de Sião", célebre falsificação fabricada pelos serviços secretos czaristas no fim do século 19, são narrativas de uma conjuração judaica mundial. Neles, e em muitos outros, os temas medievais do "judeu errante" e do "judeu usurário" configuram uma nova imagem, que será apropriada pelos nacionalismos europeus.
Essa imagem é a do "judeu sem pátria", o eterno estrangeiro, portanto inimigo, que desempenha função instrumental na arregimentação das massas em torno do poder. Depois, o "judeu sem pátria" transfigurou-se facilmente no "judeu bolchevique", na mitologia da direita nacionalista e no delírio nazista. Mais estranho é que, apesar do diagnóstico do socialista francês August Bebel ("o anti-semitismo é o socialismo dos imbecis"), a demonologia dos judeus tenha contaminado também o pensamento de esquerda do século 20.
Estranho, mas nem tanto. O anti-semitismo difundiu-se entre a esquerda quando a URSS converteu-se ao patriotismo e atingiu seu zênite no momento em que Stalin deflagrou a campanha anti-semita de 1948-53, destinada a extirpar os "cosmopolitas sem raízes". O fio desse novelo continua a se desenrolar, agora pelas mãos de uma esquerda inculta que, destituída de programa ou idéias, cultiva um rancor cego contra a globalização, o imperialismo, os EUA e Israel, que lhe parecem sinônimos, e deixa-se embevecer pelo terror jihadista e pelos homens-bomba na Palestina.
O anti-semitismo tem mil e uma utilidades. Serve, até mesmo, por oposição, aos governos israelenses confrontados por acusações de violação dos tratados que regulam o tratamento de civis sob ocupação e de uso de métodos de tortura de prisioneiros. Numa macabra manipulação utilitária da memória do Holocausto, a denúncia desses atos é, quase sempre, classificada como manifestação de anti-semitismo.
A técnica, conduzida às suas possibilidades extremas, não poupa judeus. Meron Benvenisti, que foi vice-prefeito de Jerusalém e é colunista do "Haaretz", tornou-se "anti-semita" desde que escreveu "Sacred landscape", uma obra histórica rigorosa sobre a supressão da paisagem árabe em Israel. O maestro Daniel Barenboim, criador, com Edward Said, de uma orquestra palestino-israelense, foi acoimado de "anti-semita" desde que, em agosto, recusou uma entrevista à rádio do exército de Israel.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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