São Paulo, quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Emancipação digital e redes de conhecimento

GILSON SCHWARTZ

A alfabetização , ou seja, apropriação de novas ferramentas e habilidades, é, na visão de Paulo Freire, um processo de aprendizado pelo reconhecimento. É nessa chave de leitura que se desprende a energia emancipatória do pensamento freireano, seu compromisso com a cidadania na teoria e na prática. Esse retorno aos fundamentos se justifica pela publicação, no último dia 7, de parecer do Tribunal de Contas da União sobre o Fundo de Universalização das Telecomunicações (Fust).


Recursos há. Falta firmar o marco regulatório para que o gasto público em alfabetização digital seja racional e sustentável


Criado durante o marco regulatório da privatização das telecomunicações, o Fust já soma mais de R$ 4 bilhões: 1% de todas as contas telefônicas abastecem incessantemente as burras do Tesouro Nacional. Uma arrecadação da ordem de R$ 650 milhões ao ano que, segundo o TCU, está à espera de uma política de inclusão digital. Há iniciativas, em geral de pequena escala, mas falta uma coordenação que, ainda segundo o parecer do TCU, deveria ser da Casa Civil.
A universalização das telecomunicações depende da mobilização nacional para um profundo, longo e estratégico projeto de alfabetização digital. O marco regulatório do Brasil digital é uma fronteira em que convivem paradoxalmente o excesso e a escassez de leis, atribuições e iniciativas. Só no campo da chamada "inclusão digital", o TCU descobriu 15 programas simultâneos.
Quando se busca evitar o desperdício de recursos públicos, seria prudente também abandonar de vez a expressão "inclusão" digital. Já não se trata apenas de expandir o alcance da infra-estrutura ou de financiar com subsídios a aquisição de equipamentos mas, sim, com urgência, de promover a alfabetização digital, processo intensivo de capacitação pela formação de redes, cujos fundamentos estão em Paulo Freire e na aldeia global de Marshall McLuhan.
A estratégia de alfabetização que não abre mão do ideal de reconhecimento e, portanto, indaga permanentemente pela legitimação do uso das novas ferramentas de informação e comunicação, opera no campo do desenvolvimento humano, especialmente na questão do direito à comunicação. Seria oportuno investir na articulação dessas várias iniciativas, tendo o Programa Casa Brasil, do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), como um marco regulatório fundamental.
O horizonte mais amplo da chamada "inclusão digital" deve ser o desafio da alfabetização no sentido emancipatório apontado por Paulo Freire: não se pode abrir mão da dimensão pedagógica do reconhecimento. Ocorre que a internet, entre outras vantagens que traz para o redesenho de espaços públicos, oferece, na formação de redes (veja-se os Orkuts e Uolkuts da vida), uma dimensão da vida que é, em última análise, o da certificação digital do (re)conhecimento. Mas, quem certifica? Quem garante? Até onde exerço direitos de comunicação, a partir de qual momento posso ser criminalmente processado como "pirata"?
As redes de conhecimento contemporâneas são espaços de reconhecimento híbridos, nos quais pulsam fluxos de informação analógicos e digitais, locais e globais, controlados e autônomos, centralizados e descentralizados, certificados e anônimos. Participar dessas redes, ou seja, estar alfabetizado digitalmente, é, sem dúvida, uma inclusão.
Mas não são triviais o sentido e o grau em que a chamada inclusão digital requer uma alfabetização mais complexa e contínua. Esse é um desafio de design tanto para os criadores de aparelhos (como os tocadores de música em formato MP3) como para as autoridades públicas, que precisam definir o marco regulatório em que se poderá investir, nos próximos anos, quase R$ 5 bilhões em programas de alfabetização digital.
Propomos a alfabetização com caráter emancipatório como condição de racionalidade e justiça na apropriação social do Fust. Uma inclusão com reconhecimento, promovendo a formação de identidades e a articulação de oportunidades de geração de emprego e renda, aliadas de modo sustentável ao desenvolvimento da indústria e da tecnologia, com o fomento à pesquisa para a inovação nas universidades, escolas e centros de estudo.
E mais. O debate sobre o sistema brasileiro de TV digital também converge a uma política nacional que se espera conhecer em fevereiro. Já haveria até recursos e linhas desenhadas no BNDES. Somados o Fust e a TV digital, o horizonte de investimentos mínimos e possíveis na esfera pública nos próximos cinco anos é da ordem de R$ 15 bilhões.
Mas somente uma política integrada e integradora, amparada por uma visão de longo prazo e atenta à dimensão de direitos humanos envolvida na disseminação de máquinas, chips e televisores pelo país será capaz de abrir um horizonte de desenvolvimento com emancipação individual e social. Recursos há, mas falta consolidar o marco regulatório para que o gasto público em alfabetização digital seja racional e sustentável, abrindo caminhos para a emancipação social e econômica do Brasil.
O caminho já começa a ser trilhado a partir de hoje, com o lançamento do Laboratório de Emancipação Digital no Memorial da América Latina, em São Paulo. Com isso, a Casa Civil da Presidência da República, o Ministério da Ciência e Tecnologia e a USP, em convênio com o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, se unem para, entre outros desafios, enfrentar os alertas publicados pelo TCU em relação ao Fust.

Gilson Schwartz, economista, sociólogo e jornalista, professor de economia da informação e do audiovisual no Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA-USP, é criador e diretor da Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br). Participou da equipe de auditoria do TCU sobre o Fust e é coordenador do Laboratório de Emancipação Digital do Programa Casa Brasil (ITI-USP).


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