São Paulo, sábado, 15 de dezembro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É hora de o Brasil modificar sua política externa para a América do Sul?

SIM

Uma estratégia invertida

ROBERTO ABDENUR

DOIS CONCEITOS hoje presentes no debate sobre nossa política exterior para a região são objeto, por parte do governo, de interpretações -ou abordagens- curiosamente invertidas.
No afã de acelerar o processo de "integração", passa-se por cima do fato de que o sentido próprio do termo, que inspirou nosso primeiro empreendimento sob sua égide -o Mercosul-, é o entrelaçamento profundo entre as economias e sociedades. Coisa só factível ao longo de décadas e gerações, como demonstra a UE.
Ao interpretar o conceito em termos demasiado latos, afoba-se Brasília em expandir o que considera "integração" pela promoção de iniciativas lançadas de forma prematura ou em aderir a propostas formalizadas na ausência de decisões sobre aspectos essenciais de sua configuração.
Essa manobra conceitual tem outro inconveniente: trata "integração" como se fosse esse o único caudal de nossa política sul-americana. Perde-se de vista o fato de que certas ações cabem melhor no contexto de nossa política bilateral para com cada um de nossos vizinhos. O bilateral, sim, pode servir à integração. Mas nem tudo o que se faz ou se deve fazer no bilateral está necessariamente a serviço da integração. E não se devem promover iniciativas supostamente integracionistas à custa de objetivos nacionais no plano bilateral ou para além dele.
Há, correlatamente, outros problemas com nossa atitude para com os vizinhos. Superestima-se nossa capacidade de "liderar". Subestimam-se sentimentos de frustração e ressentimento, por vezes fundados em fatos históricos, que existem para conosco na região. E que só fazem exacerbar-se quando nela surgimos como grandes investidores e superavitários parceiros comerciais. Ou quando nos deixamos levar por excesso de protagonismo nos cenários internacionais. Ignora-se, em suma, a existência de inevitáveis tensões entre os movimentos integracionistas e certas vertentes estritamente nacionais de nossa política exterior.
A descabida candidatura à direção da OMC (descabida porque o Brasil não podia ser ativo membro de um novo pólo das negociações de Doha, o G20, e, ao mesmo tempo, ocupar a posição de "árbitro" de tal processo) muito nos custou ao suscitar não pequena irritação por parte de muitos de nossos parceiros regionais.
Dias atrás, um dos atuais formuladores de nossa política disse, em breve frase, exatamente o contrário do que deve ser nossa atuação na região. Afirmou que o Brasil deve "coordenar e liderar a formação de um bloco sul-americano". Uma coisa é um país estar momentânea e temporariamente no exercício da presidência de um organismo, como o Mercosul, o Grupo do Rio (foro de consulta e coordenação políticas) ou outro dos órgãos do subcontinente. Atribuir-se a condição de supremo coordenador é ignorar que tal pretensão não é propriamente do agrado dos "coordenados".
Mais capaz ainda de suscitar reações negativas é a arrogante pretensão de "liderar", palavra que a diplomacia brasileira outrora buscava a todo custo evitar por causa dos elevados custos de sua enunciação.
E falar em "bloco" sul-americano é supor grau elevadíssimo de coesão "para fora" ou mesmo "contra" outros países ou agrupamentos regionais. Deixa esse objetivo de levar em conta que nossos vizinhos (e nós mesmos) têm variados interesses extra-regionais -com os EUA, a UE, a Ásia.
Interesses que continuarão a sustentar mesmo em futuros estágios mais adiantados da integração regional.
O Mercosul almeja ser vetor de maior e melhor inserção internacional para seus membros. Busca parceiros com que comerciar e interagir. Não adversários a combater ou dos quais isolar-se.
Por tudo isso, sim, é hora de uma reflexão mais detida sobre nossa política sul-americana. Precisamos de mais realismo, prudência e comedimento. Precisamos consolidar e reforçar o Mercosul em sua atual composição, e não prosseguir numa "fuite en avant" que coloque em risco aquele que é o único e verdadeiro projeto de integração que nos interessa.


ROBERTO ABDENUR, 65, diplomata de carreira aposentado, foi embaixador do Brasil no Equador (85-88), na China (89-93), na Alemanha (96-2001), na Áustria e na ONU em Viena (2002-2003) e Washington (2004-2006), além de secretário-geral do Itamaraty (93-94). É colaborador do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

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