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TENDÊNCIAS/DEBATES
É hora de o Brasil modificar sua política externa para a América do Sul?
SIM
Uma estratégia invertida
ROBERTO ABDENUR
DOIS CONCEITOS hoje presentes no debate sobre nossa política exterior para a região são
objeto, por parte do governo, de interpretações -ou abordagens- curiosamente invertidas.
No afã de acelerar o processo de
"integração", passa-se por cima do fato de que o sentido próprio do termo,
que inspirou nosso primeiro empreendimento sob sua égide -o Mercosul-, é o entrelaçamento profundo
entre as economias e sociedades. Coisa só factível ao longo de décadas e gerações, como demonstra a UE.
Ao interpretar o conceito em termos demasiado latos, afoba-se Brasília em expandir o que considera "integração" pela promoção de iniciativas
lançadas de forma prematura ou em
aderir a propostas formalizadas na
ausência de decisões sobre aspectos
essenciais de sua configuração.
Essa manobra conceitual tem outro inconveniente: trata "integração"
como se fosse esse o único caudal de
nossa política sul-americana. Perde-se de vista o fato de que certas ações
cabem melhor no contexto de nossa
política bilateral para com cada um de
nossos vizinhos. O bilateral, sim, pode
servir à integração. Mas nem tudo o
que se faz ou se deve fazer no bilateral
está necessariamente a serviço da integração. E não se devem promover
iniciativas supostamente integracionistas à custa de objetivos nacionais
no plano bilateral ou para além dele.
Há, correlatamente, outros problemas com nossa atitude para com os
vizinhos. Superestima-se nossa capacidade de "liderar". Subestimam-se
sentimentos de frustração e ressentimento, por vezes fundados em fatos
históricos, que existem para conosco
na região. E que só fazem exacerbar-se quando nela surgimos como grandes investidores e superavitários parceiros comerciais. Ou quando nos
deixamos levar por excesso de protagonismo nos cenários internacionais.
Ignora-se, em suma, a existência de
inevitáveis tensões entre os movimentos integracionistas e certas vertentes estritamente nacionais de nossa política exterior.
A descabida candidatura à direção
da OMC (descabida porque o Brasil
não podia ser ativo membro de um
novo pólo das negociações de Doha, o
G20, e, ao mesmo tempo, ocupar a posição de "árbitro" de tal processo)
muito nos custou ao suscitar não pequena irritação por parte de muitos
de nossos parceiros regionais.
Dias atrás, um dos atuais formuladores de nossa política disse, em breve frase, exatamente o contrário do
que deve ser nossa atuação na região.
Afirmou que o Brasil deve "coordenar
e liderar a formação de um bloco sul-americano". Uma coisa é um país estar momentânea e temporariamente
no exercício da presidência de um organismo, como o Mercosul, o Grupo
do Rio (foro de consulta e coordenação políticas) ou outro dos órgãos do
subcontinente. Atribuir-se a condição de supremo coordenador é ignorar que tal pretensão não é propriamente do agrado dos "coordenados".
Mais capaz ainda de suscitar reações negativas é a arrogante pretensão de "liderar", palavra que a diplomacia brasileira outrora buscava a todo custo evitar por causa dos elevados
custos de sua enunciação.
E falar em "bloco" sul-americano é
supor grau elevadíssimo de coesão
"para fora" ou mesmo "contra" outros países ou agrupamentos regionais. Deixa esse objetivo de levar em
conta que nossos vizinhos (e nós mesmos) têm variados interesses extra-regionais -com os EUA, a UE, a Ásia.
Interesses que continuarão a sustentar mesmo em futuros estágios mais
adiantados da integração regional.
O Mercosul almeja ser vetor de
maior e melhor inserção internacional para seus membros. Busca parceiros com que comerciar e interagir.
Não adversários a combater ou dos
quais isolar-se.
Por tudo isso, sim, é hora de uma
reflexão mais detida sobre nossa política sul-americana. Precisamos de
mais realismo, prudência e comedimento. Precisamos consolidar e reforçar o Mercosul em sua atual composição, e não prosseguir numa "fuite
en avant" que coloque em risco aquele que é o único e verdadeiro projeto
de integração que nos interessa.
ROBERTO ABDENUR, 65, diplomata de carreira aposentado, foi embaixador do Brasil no Equador (85-88), na China (89-93), na Alemanha (96-2001), na Áustria e na ONU
em Viena (2002-2003) e Washington (2004-2006), além
de secretário-geral do Itamaraty (93-94). É colaborador
do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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