São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2011

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ALAN GRIPP

As cidades

O roteiro é conhecido: o verão chega, desaba o aguaceiro, iniciamos a contagem dos mortos, autoridades suspendem férias para realizar sobrevoos de helicópteros, recursos emergenciais são anunciados até que uma nova crise ocupe a ordem do dia.
Num país que se orgulha de viver uma grande transformação, é intrigante como a tragédia anual das chuvas segue rigorosamente o mesmo script -para ser mais exato, a contabilidade dos mortes apresenta curva ascendente.
Essa aparente contradição evidencia algo que pode ser verificado em outros episódios de calamidade: a despeito da melhora do quadro clínico geral do país, as cidades brasileiras não saíramdo estado de coma.
O emprego é recorde, há um avanço incontestável na distribuição de renda, encontra-se crédito na feira, mas as cidades, o lugar onde as pessoas de fato vivem, essas não vão nada bem.
Para ser segura, funcional, atraente, uma cidade não pode viver apenas dos bons ventos da economia. Precisa de soluções únicas, corajosas e, muitas vezes, impopulares. E aí é que mora a inércia -no sentido clássico ou por conveniência política.
Não é por outra razão que, apesar de crescer em ritmo chinês, o Nordeste viu triplicar a sua taxa de homicídios na última década -municípios médios e grandes do Maranhão, de Alagoas e do Rio Grande do Norte têm hoje índice de assassinatos dignos da Medelín de Pablo Escobar
Há poucos motivos para duvidar de que em 2025 São Paulo será a 6ª cidade mais rica do mundo, como prevê a consultoria PricewaterhouseCoopers.
E há muitos para acreditar que até lá a capital paulista não conseguirá resolver a epidemia do consumo de crack.
Para não perder de vista o tema da vez, a chuva, fica evidente em momentos como este que a ocupação irregular do espaço urbano (por ricos e pobres) é um não tema nas cidades. Ou melhor, é um tema apenas do pós-tragédia.
Nas cidades da região serrana do Rio de Janeiro mais atingidas, nada menos do que 56 mil pessoas vivem em áreas de risco, segundo estimativa oficial -ou viviam, já que há mais de 13 mil desalojados e centenas de mortos.
É verdade que invasões, sozinhas, não explicam o que ocorreu. Mas também é indiscutível que elas multiplicaram o saldo macabro. Chovesse em uma cidade mais bem planejada o que choveu em Friburgo, não estaríamos contando mortos em três dígitos, como não está contando a Austrália.
Importante pontuar que a decadência urbana brasileira é multipartidária. Mas está umbilicalmente relacionada com o fracasso do governo federal no papel de formulador maior de políticas públicas e na condição de primo rico.

ALAN GRIPP é editor-adjunto de Poder.


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