São Paulo, sábado, 16 de janeiro de 1999

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REMÉDIO AMARGO

A decisão do Banco Central permitindo a livre flutuação da taxa de câmbio não deve ser vista como panacéia. É um remédio, mas seus efeitos não podem ser medidos apenas com base na reação favorável ontem observada no mercado financeiro.
Os desequilíbrios produzidos pela sobrevalorização do real são significativos e estruturais. O desarme da bomba de expectativas de maxidesvalorização cambial resolve um dos problemas, é um remédio, mas obviamente não passa de um dos ingredientes da dolorosa terapia a que a sociedade brasileira será submetida.
O Banco Central determinou ontem que o valor do real em relação ao dólar flutuasse ao sabor das forças de oferta e procura. Ou seja, retirou-se do mercado, interrompendo a trágica queima de reservas para tentar conter a procura por dólares.
Nesse novo ambiente, se a demanda ficar acima da oferta de dólares no mercado, o ajuste se dará pelo aumento do preço do dólar, não mais pela redução do caixa do BC.
No modelo anterior, quando os agentes econômicos percebiam que o BC, tentando segurar a taxa de câmbio, perdia muitas reservas, passavam a demandar ainda mais dólares. O BC respondia vendendo suas reservas e os compradores voltavam a pedir mais. O desfecho desse modelo é conhecido e foi vivido nos últimos anos por vários países emergentes, da Tailândia à Rússia. Ao permitir a variação no preço do dólar, resguardando suas reservas em nível ainda suficientemente elevado, o BC finalmente criou condições para o desmonte da bomba de expectativas.
Como as reservas do BC ficam preservadas com a livre flutuação, o jogo de apostas numa desvalorização descontrolada termina. Isso explica a sensação de alívio que dominou os mercados ontem. O BC saiu da berlinda, escapou ao xeque. Mas não significa que, nas próximas semanas ou meses, estejam descartados outros testes para a política cambial e mesmo para o conjunto da política econômica brasileira.
A especulação contra a moeda não é um fenômeno que se limita à avaliação cotidiana dos mecanismos de atuação do Banco Central. Estão em jogo também os chamados fundamentos da economia, tanto nas contas públicas quanto nas contas externas. Por enquanto, o governo tenta escapar das armadilhas criadas por uma política de câmbio insustentável. O que não é suficiente para garantir a redução consistente dos déficits público e de conta corrente.
Isso será difícil e exigirá enorme habilidade operacional (virtude que o BC nem sempre é capaz de exibir). Mas também uma vontade política e uma capacidade de articulação de interesses que o governo perdeu na procura da reeleição de FHC.
A desvalorização cambial tem um impacto imediato negativo sobre as contas públicas, porque aumenta o custo em reais das dívidas do governo em dólar. É verdade que a médio prazo pode haver uma compensação advinda da queda dos juros, que é maior e mais rápida quanto maior a desvalorização cambial. Ou, pelo menos, quanto mais convincente para os mercados for o novo câmbio.
Ainda assim, o BC não poderá dar-se ao luxo de abrir mão completamente dos juros altos como instrumento de condução da economia. Uma retomada imediata do crescimento está fora de questão. E os juros, mesmo que bastante inferiores às taxas alucinadas que eram necessárias apenas para sustentar a âncora cambial, deverão ser ainda elevados o bastante para manter o país em recessão. Consequentemente, continuarão onerando as despesas financeiras do Tesouro. O desmonte do modelo anterior impede o desastre, mas é insuficiente para criar um horizonte de recuperação da economia.
Um dos obstáculos para a retomada mais rápida do crescimento é a volta da inflação. Na ausência de indexação (ou seja, correção automática de salários), a provável elevação dos preços vai reduzir o poder aquisitivo e contribuir para o encolhimento das vendas e da produção.
Outro limite ao crescimento resulta da necessidade de gerar superávits comerciais. Evidentemente, a desvalorização cambial ajuda, em tese, a aumentar as exportações e reduzir as importações. Mas é preciso lembrar que o cenário econômico aponta para uma redução do crescimento global. Praticamente todos os países estarão importando menos e, portanto, exportar será mais difícil para todos, mesmo para os que desvalorizaram suas respectivas moedas.
A busca do superávit comercial pode depender mais da redução de importações, cujo nível é condicionado pela taxa de câmbio mas também pelo esfriamento da economia, inclusive por meio de taxas de juros ainda elevadas. O impacto da liberação cambial sobre os fluxos de capitais também continua envolto em dúvidas. É verdade que desarmar a bomba cambial contribui para a normalização do crédito comercial.
Investidores que saíram do país, temendo a desvalorização, podem considerar que, feito o ajuste dos últimos dias, torna-se novamente interessante voltar.
Eles ganharam a aposta, e qual comemoração poderia ser mais proveitosa que recomprar reais e voltar a ganhar com os juros domésticos, que ainda permanecerão elevados para os padrões internacionais?
Com dólares mais fortes, os investidores poderão também considerar sedutores os projetos de investimento no país, cujas empresas estarão ainda mais baratas. Mas esse possível retorno dos capitais, sob várias formas, fatalmente vai ter de enfrentar um ambiente de arrocho fiscal, de erosão do poder aquisitivo, de juros ainda elevados e incerteza quanto à evolução do cenário político.
Em suma, o exame dos fundamentos da economia brasileira, do setor público e do setor externo revela que o esforço do governo brasileiro pela reconquista da credibilidade, supondo que não haja novos abalos no sistema financeiro internacional, enfrentará obstáculos significativos.
O modelo de política econômica anterior era insustentável. Terá sido muito meritório desmontá-lo com um mínimo de desordem e principalmente evitando um colapso de proporções semelhantes às dos vividos por outros mercados emergentes.
Mas o alívio por evitar a catástrofe não basta. O país precisa urgentemente das reformas prometidas. Até que elas sejam obtidas, a política econômica terá o sabor de um remédio amargo, sobre cujos efeitos ainda pairam dúvidas tanto de ordem técnica como de natureza política.



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