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REMÉDIO AMARGO
A decisão do Banco Central permitindo a livre flutuação da taxa de
câmbio não deve ser vista como panacéia. É um remédio, mas seus efeitos não podem ser medidos apenas
com base na reação favorável ontem
observada no mercado financeiro.
Os desequilíbrios produzidos pela
sobrevalorização do real são significativos e estruturais. O desarme da
bomba de expectativas de maxidesvalorização cambial resolve um dos
problemas, é um remédio, mas obviamente não passa de um dos ingredientes da dolorosa terapia a que a
sociedade brasileira será submetida.
O Banco Central determinou ontem
que o valor do real em relação ao dólar flutuasse ao sabor das forças de
oferta e procura. Ou seja, retirou-se
do mercado, interrompendo a trágica queima de reservas para tentar
conter a procura por dólares.
Nesse novo ambiente, se a demanda
ficar acima da oferta de dólares no
mercado, o ajuste se dará pelo aumento do preço do dólar, não mais
pela redução do caixa do BC.
No modelo anterior, quando os
agentes econômicos percebiam que
o BC, tentando segurar a taxa de
câmbio, perdia muitas reservas, passavam a demandar ainda mais dólares. O BC respondia vendendo suas
reservas e os compradores voltavam
a pedir mais. O desfecho desse modelo é conhecido e foi vivido nos últimos anos por vários países emergentes, da Tailândia à Rússia. Ao permitir a variação no preço do dólar, resguardando suas reservas em nível
ainda suficientemente elevado, o BC
finalmente criou condições para o
desmonte da bomba de expectativas.
Como as reservas do BC ficam preservadas com a livre flutuação, o jogo
de apostas numa desvalorização descontrolada termina. Isso explica a
sensação de alívio que dominou os
mercados ontem. O BC saiu da berlinda, escapou ao xeque. Mas não
significa que, nas próximas semanas
ou meses, estejam descartados outros testes para a política cambial e
mesmo para o conjunto da política
econômica brasileira.
A especulação contra a moeda não é
um fenômeno que se limita à avaliação cotidiana dos mecanismos de
atuação do Banco Central. Estão em
jogo também os chamados fundamentos da economia, tanto nas contas públicas quanto nas contas externas. Por enquanto, o governo tenta
escapar das armadilhas criadas por
uma política de câmbio insustentável. O que não é suficiente para garantir a redução consistente dos déficits público e de conta corrente.
Isso será difícil e exigirá enorme habilidade operacional (virtude que o
BC nem sempre é capaz de exibir).
Mas também uma vontade política e
uma capacidade de articulação de interesses que o governo perdeu na
procura da reeleição de FHC.
A desvalorização cambial tem um
impacto imediato negativo sobre as
contas públicas, porque aumenta o
custo em reais das dívidas do governo em dólar. É verdade que a médio
prazo pode haver uma compensação
advinda da queda dos juros, que é
maior e mais rápida quanto maior a
desvalorização cambial. Ou, pelo
menos, quanto mais convincente para os mercados for o novo câmbio.
Ainda assim, o BC não poderá
dar-se ao luxo de abrir mão completamente dos juros altos como instrumento de condução da economia.
Uma retomada imediata do crescimento está fora de questão. E os juros, mesmo que bastante inferiores
às taxas alucinadas que eram necessárias apenas para sustentar a âncora
cambial, deverão ser ainda elevados
o bastante para manter o país em recessão. Consequentemente, continuarão onerando as despesas financeiras do Tesouro. O desmonte do
modelo anterior impede o desastre,
mas é insuficiente para criar um horizonte de recuperação da economia.
Um dos obstáculos para a retomada
mais rápida do crescimento é a volta
da inflação. Na ausência de indexação (ou seja, correção automática de
salários), a provável elevação dos
preços vai reduzir o poder aquisitivo
e contribuir para o encolhimento das
vendas e da produção.
Outro limite ao crescimento resulta
da necessidade de gerar superávits
comerciais. Evidentemente, a desvalorização cambial ajuda, em tese, a
aumentar as exportações e reduzir as
importações. Mas é preciso lembrar
que o cenário econômico aponta para uma redução do crescimento global. Praticamente todos os países estarão importando menos e, portanto,
exportar será mais difícil para todos,
mesmo para os que desvalorizaram
suas respectivas moedas.
A busca do superávit comercial pode depender mais da redução de importações, cujo nível é condicionado
pela taxa de câmbio mas também pelo esfriamento da economia, inclusive por meio de taxas de juros ainda
elevadas. O impacto da liberação
cambial sobre os fluxos de capitais
também continua envolto em dúvidas. É verdade que desarmar a bomba cambial contribui para a normalização do crédito comercial.
Investidores que saíram do país, temendo a desvalorização, podem considerar que, feito o ajuste dos últimos dias, torna-se novamente interessante voltar.
Eles ganharam a aposta, e qual comemoração poderia ser mais proveitosa que recomprar reais e voltar a
ganhar com os juros domésticos, que
ainda permanecerão elevados para
os padrões internacionais?
Com dólares mais fortes, os investidores poderão também considerar
sedutores os projetos de investimento no país, cujas empresas estarão
ainda mais baratas. Mas esse possível retorno dos capitais, sob várias
formas, fatalmente vai ter de enfrentar um ambiente de arrocho fiscal, de
erosão do poder aquisitivo, de juros
ainda elevados e incerteza quanto à
evolução do cenário político.
Em suma, o exame dos fundamentos da economia brasileira, do setor
público e do setor externo revela que
o esforço do governo brasileiro pela
reconquista da credibilidade, supondo que não haja novos abalos no sistema financeiro internacional, enfrentará obstáculos significativos.
O modelo de política econômica anterior era insustentável. Terá sido
muito meritório desmontá-lo com
um mínimo de desordem e principalmente evitando um colapso de proporções semelhantes às dos vividos
por outros mercados emergentes.
Mas o alívio por evitar a catástrofe
não basta. O país precisa urgentemente das reformas prometidas. Até
que elas sejam obtidas, a política
econômica terá o sabor de um remédio amargo, sobre cujos efeitos ainda
pairam dúvidas tanto de ordem técnica como de natureza política.
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