São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Waldomiro, realismo e destempero

FÁBIO WANDERLEY REIS

Sou dos que entendem que o PT representa real novidade, e novidade boa, no cenário político-partidário do país. A origem mais autenticamente popular e trabalhista, a marca dos embates político-ideológicos que traz do berço, no enfrentamento com o regime ditatorial de 1964 e em certa referência socialista inicial, e a singularidade e o vigor simbólico da liderança de Lula sem dúvida permitem apontar o partido como um experimento peculiar. Por outro lado, vejo com bons olhos o aprendizado de realismo feito em tempos recentes. Há muito esse aprendizado me parece inevitável como condição da viabilização efetiva do partido, tanto em termos eleitorais quanto no que se refere à capacidade real de governar -e agora com mais razão, no mundo da derrocada do socialismo e dos constrangimentos da globalização. E festejo, no governo Lula, a habilidade e a forma cuidadosa e responsável em que se vem lidando com os desafios e dificuldades que cercam, nesse mundo novo, a chegada ao poder de um partido em princípio empenhado em mudanças de que o país há tempos necessita.
Mas o episódio Waldomiro aponta os limites do realismo. Naturalmente, o realismo supõe que se apreendam as condições "reais" em que se atua, o que já coloca indagações complicadas mesmo em matéria de administração econômica e social, em particular a que vem incomodando os setores de esquerda do partido: a disposição realista não correrá o risco de fazer esmorecer a busca atenta de opções que permitam atacar com eficácia as urgências sociais inadiáveis? Mas, se aí é possível o confronto de avaliações "técnicas" que podem pretender cada uma maior acuidade, quando se trata de questões que se situam no plano ético, a ameaça de que o realismo se destempere é mais clara. E surge a questão que se suscitou com freqüência a respeito do governo FHC: a do ponto em que o líder de estatura, atento não apenas a expeditas considerações de eficiência, mas também aos valores que lhe cabe afirmar e sustentar, socará a mesa e optará singelamente pela conduta exemplar.


Dirceu se deixou enganar ou foi conivente? As respostas talvez exijam a CPI, com certa intranqüilidade política
Na verdade, porém, há mais em jogo do que o suposto contraste entre uma "ética da responsabilidade", preocupada com as conseqüências e a eficiência das ações ou decisões, e uma outra que simplesmente reafirma convicções ou valores. Pois o conteúdo simbólico e exemplar da liderança freqüentemente se revela parte decisiva da possibilidade de real e duradoura eficiência governamental. No caso Waldomiro, naturalmente, a linha exemplar será aquela em que o governo não tergiverse quanto à transparência e ao esclarecimento cabal dos fatos relevantes. Dada a gravidade do que até aqui se revelou, com um escroque gozando da confiança do segundo de Lula, que outras bandalheiras, e de que porte, terão ocorrido? Sem falar do desdobramento especialmente incômodo: Dirceu se deixou enganar ou foi conivente? As respostas talvez exijam a CPI, com certa intranqüilidade política, e os custos ao menos passageiros que podem daí resultar para o próprio quadro econômico, em que a luta vem sendo tão árdua.
Mas é preciso atentar para a escolha diante da qual o governo se encontra. A alternativa às asperezas e problemas da transparência pode ser o comprometimento definitivo do capital simbólico do partido e do governo, e da própria figura de Lula. O resultado seria corroborar a tese dos que, esvaziadas as denúncias de "ameaça totalitária", se esforçam por apontar no PT a "farinha do mesmo saco" da perene visão negativa de nossos políticos e partidos. E, mesmo na hipótese favorável de que as conseqüências negativas eventualmente demorem a alcançar as parcelas mais amplas do eleitorado popular e que as perspectivas eleitorais imediatas não sejam dramaticamente afetadas, ficam os exemplos recentes de precárias relações com o Congresso e deficiente capacidade governativa que caracterizaram presidentes desmoralizados pelo excessivo empenho de "realismo".
Tudo indica tratar-se de encruzilhada potencialmente decisiva. Ou Lula marca a diferença, e talvez possa fazer, do limão, limonada, ou corre o risco de reduzir-se a mais um líder "esperto".


Fábio Wanderley Reis, 66, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).




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