São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A cidadania virou gente

RUY ALTENFELDER

A redemocratização brasileira -cujos ícones foram a campanha das Diretas-Já, em 1984, a eleição do presidente Tancredo Neves e a posse do governo civil, em 1985, e a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988- conferiu significado mais amplo ao substantivo cidadão. A cada dia de liberdade política, o termo foi se consolidando como predicado essencial das pessoas, em suas atividades e no cotidiano de sua interação com a sociedade, o Estado, a Justiça, a imprensa e o mercado consumidor.
No livro "Cidadania no Brasil - O Longo Caminho" (Civilização Brasileira), José Murilo de Carvalho analisa muito bem a questão. Observa que, na democracia, "a cidadania virou gente". Gente que vota, protesta, reivindica direitos, cumpre deveres, compartilha responsabilidades e assume a condução soberana de sua própria história, seu destino. É essa mesma gente, ungida pela graça da cidadania, que pede, mais uma vez, aos poderes Legislativo e Executivo, a realização da reforma política. A realidade nacional torna cada vez mais claro ser essa tarefa imprescindível. Não teriam relação de causa e efeito com a legislação política, falha e ultrapassada, episódios como a recente reforma ministerial, que, além de deixar em segundo plano a questão da fidelidade partidária, levou mais uma vez ao Executivo parlamentares eleitos para cumprirem mandato no Poder Legislativo?
Um dos pontos a serem revistos na reforma política é exatamente o referente ao cumprimento integral dos mandatos de senadores e deputados, que, recebendo o voto para o Parlamento, não deveriam transferir-se para cargos no governo. Essa prática é desrespeitosa aos eleitores. Outro item fundamental é relativo à fidelidade partidária. A troca banal de partido, ao léu de vínculos efetivos com causas e programas, torna fluidos os compromissos dos políticos, suscitando mudanças aleatórias de posicionamento e fisiologismo. O último Código Eleitoral é de 1965. A cada eleição, estabelecem-se normas específicas. Isso mobiliza tempo do Congresso, do Executivo e da Justiça Eleitoral, além de dar margem à improvisação e ao casuísmo. O Brasil precisa de um Código Eleitoral moderno. Nesse sentido, um dos avanços fundamentais é o voto distrital misto, para que cada região ou área eleitoral tenham representantes próprios e legítimos no Legislativo.


O último Código Eleitoral é de 1965. A cada eleição, estabelecem-se normas específicas. Isso dá margem ao casuísmo
A reforma deve contemplar, ainda, a normalização dos financiamentos das campanhas, visando estabelecer plena transparência de origem e destino dos recursos. Outra necessidade é rever a proporcionalidade da representação dos Estados na Câmara dos Deputados. Hoje, o voto dos eleitores de Estados mais populosos vale menos do que os de menor número de habitantes. Essa distorção é um dos fatores que diluem os compromissos do Congresso com o interesse da maioria da população. Finalmente, deve-se extinguir a obrigatoriedade do voto, muito mais um direito do que dever.
Verifica-se, mais uma vez, que bastou o início do ano eleitoral -que deveria ser sempre um período naturalmente incorporado à rotina do Estado democrático- para que os gargalos da legislação político-eleitoral possibilitem o início de movimentos sísmicos no âmbito do setor público. Permanecer ou ascender ao poder torna-se, para muitos, mais importante do que honrar compromissos partidários ou assumidos com os cidadãos. Assim, a reforma política tem de contemplar o aperfeiçoamento da democracia e, ao mesmo tempo, estimular posturas éticas no exercício do poder conferido pelo voto.
Trata-se, portanto, de tema a ser debatido em profundidade e incluído na pauta de reivindicações aos Poderes constituídos. É com essa intenção que o Instituto Roberto Simonsen, organismo de estudos avançados da Fiesp, realiza, em 18 de fevereiro, na sede da entidade, em São Paulo, seminário sobre a reforma política, com a presença dos presidentes dos partidos, dentre outras personalidades. Discussões dessa natureza devem ser multiplicadas, para que os cidadãos conquistem a prerrogativa plena de que o voto eleja compromissos, causas, ideologias, programas, e não efêmeros discursos e volúveis ocupantes de cargos públicos. Uma reforma política eficaz irá, portanto, potencializar a valorização que o Estado de Direito já promoveu no exercício da cidadania.


Ruy Martins Altenfelder Silva, 64, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen, organismo de estudos avançados da Fiesp. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001-2002).




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