São Paulo, sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

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O direito à anistia

JOSÉ LUIS OLIVEIRA LIMA e RODRIGO DALL'ACQUA

O que mais choca é a afirmação, feita por um ex-ministro da Justiça, de que a comentada anistia seria um ato de desprezo ao STF

EM ARTIGO publicado neste conceituado jornal sob o título "Anistia jamais", o advogado Miguel Reale Júnior, ex-vice-presidente do PSDB paulista e principal membro do comitê financeiro da campanha presidencial de Geraldo Alckmin, se propõe a "relembrar os fatos" que levaram à cassação do ex-deputado federal José Dirceu. Contrariando seu propósito declarado, nenhum fato foi rememorado no artigo, sendo citado apenas o relatório final do processo de cassação, de autoria do deputado Júlio Delgado.
Peça que, além de não conter nenhuma prova de participação do ex-deputado José Dirceu nos repasses ilegais de recursos, ainda foi severamente extirpada pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu ali graves violações ao princípio constitucional do devido processo legal, garantia maior de todo e qualquer acusado.
As intervenções do Supremo Tribunal Federal, duramente combatidas pela mídia (chegou-se a insinuar, ainda que sem lógica aparente, que a doença e ausência de um ministro seria uma manobra), serviram para escancarar a fragilidade do voto do deputado Júlio Delgado. Tal relatório, que, pela sua importância, deveria ser uma bem fundamentada sentença, restou resumido a um discurso político vazio e inconsistente.
Na tentativa de impingir certa legitimidade a um relatório desprovido de provas, utilizou o eminente advogado, como argumento, a "expressiva votação" obtida no plenário da Câmara dos Deputados, contabilizando 293 votos a favor e 192 contra a cassação do ex-ministro-chefe da Casa Civil.
Difícil entender a lógica desse argumento, a não ser que se esqueça que os mesmos parlamentares que votaram para aprovar o relatório contra José Dirceu também absolveram a imensa maioria dos deputados que, assumidamente, receberam recursos irregulares para financiamento de campanha.
O que mais choca, porém, é a afirmação, feita por um ex-ministro da Justiça, de que a comentada anistia significaria ato de desprezo ao Supremo Tribunal Federal, no qual se afirmou tramitar uma ação penal contra José Dirceu.
É impossível que não se saiba, num processo com tanta visibilidade, que o Supremo Tribunal Federal nem sequer chegou a analisar a denúncia oferecida, podendo inclusive rejeitá-la e arquivar o inquérito.
E mais, ainda que de fato houvesse um processo criminal em andamento, é igualmente inadmissível que um jurista, que também é um político, ignore o significado e a aplicação do elementar princípio da presunção de inocência, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Nem sequer há processo instaurado, quanto mais uma sentença, situação muito parecida com a do senador Eduardo Azeredo, partidário de Reale Júnior, que, pelo mesmo princípio, não pode ser rotulado como o precursor do valerioduto.
Em vez de relembrar fatos que nunca existiram, o articulista, ex-suplente do ex-senador José Serra, pretende reavivar o clima político que permeou o processo de cassação, antecipando radicalmente a sucessão presidencial de 2010. Não esconde que o grande malefício da suposta anistia de José Dirceu não é a sua conseqüência (a retomada de seus direitos políticos), mas, sim, a sua origem, a iniciativa popular, pois um projeto de anistia amparado em mais de 1 milhão de brasileiros poderia fazer do anistiado um provável concorrente à futura eleição presidencial.
O projeto de anistia do ex-deputado José Dirceu nem sequer existe, mas já desperta e certamente provocará posições políticas radicalmente contrárias, comuns e saudáveis em uma democracia. Mas, para o bem do próprio Estado democrático de Direito, esse debate deve respeitar a verdadeira história dos fatos que envolveram seu processo de cassação, os nossos princípios constitucionais elementares e, principalmente, a soberania popular.


JOSÉ LUIS OLIVEIRA LIMA, 40, advogado criminalista, membro da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e do Instituto dos Advogados de São Paulo, e RODRIGO DALL'ACQUA, advogado criminalista, especialista em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra e membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, são advogados do ex-deputado federal José Dirceu.

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