São Paulo, sexta-feira, 16 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS / DEBATES

Conflito de egos ou choque de idéias?

LUIZ GUSHIKEN

Recentemente proferi um breve discurso, que foi em parte reproduzido pelos jornais e que motivou uma onda de análises e interpretações por parte de renomados jornalistas.
A primeira crítica diz respeito à abordagem do que chamei de agenda positiva. A frase que disse no encontro com representantes da Federação Nacional dos Jornalistas e profissionais do Comitê de Imprensa foi a seguinte: "Um critério importante é o critério da agenda positiva. O povo brasileiro tem necessidade de saber aqueles empreendimentos positivos que a sociedade está oferecendo, seja por conta de décadas e décadas de dificuldades com que este país vem operando, seja porque o cidadão precisa ver um lado positivo das coisas. Este país está cheio de coisas boas".
As críticas disparadas apontaram uma suposta intenção minha de exigir da imprensa a "publicização" das boas ações do governo, o que não corresponde à verdade. Portanto considerei apressada a forma como o assunto foi tratado por jornalistas experientes, principalmente quando inferiram de minhas palavras um viés autoritário, tentativa de cooptação ou presunção de ensinar o ofício. Minhas observações sobre agenda positiva -que não se confunde com ações de governo- não se baseiam na crença de um mundo cor de rosa, mas são fruto da percepção de que o espelho da mídia precisa incluir o cotidiano de um povo que é, ao mesmo tempo, portador de necessidades e protagonista de situações nas quais demonstra espírito empreendedor e solidário. Um país que não se conhece desperdiça seu capital humano e social.


O que está em questão é a maneira como devem ser encaradas as duas formas de estabelecer o contraditório

É possível pôr em destaque personagens anônimos envolvidos em projetos e ações que revelam profundos laços comunitários e admiráveis doses de paciência e garra pessoais. Acredito que haja maneiras de olhar para o cotidiano a partir da inventividade na resolução de problemas e dos compromissos solidários do povo. É positivo perceber o retrato de um país que, apesar do crônico quadro de exclusão e sofrimento, vê germinar, nas suas entranhas, o sentimento de auto-estima de seu povo.
A segunda crítica incidiu sobre a seguinte frase: "Eu penso que a exploração do contraditório, muitas vezes, pode fomentar discórdia, conflitos de egos, quando, na verdade, são apenas disputas de idéias, normais no processo de debate". O princípio do contraditório, a meu ver, constitui método intrínseco aos debates, envolvendo interesses individuais ou coletivos, explicitados ou dissimulados, legítimos ou não. A questão é saber como esse princípio se aplica em atividades coletivas dentro do Estado, quando o propósito é chegar a um consenso, ou a uma opinião de maioria sobre determinada situação, ou ainda à escolha da ação mais sábia.
Na aplicação do princípio do contraditório, duas faces podem ser reveladas pelos protagonistas: conflito de egos ou simples confronto de opiniões. Essa aparente nuance, que para alguns é uma sutileza secundária, em minha modesta visão é a questão de fundo em um processo dialógico. O que está em questão é a maneira como devem ser encaradas as duas formas de estabelecer o contraditório. Das duas, qual tipologia de debate melhor oferece a centelha de verdade ou a luz? Certamente não é a contradição inspirada na exacerbação de egos.
Se é verdade que em quase todos os assuntos os debates e consultas são inerentes, igualmente relevante é identificar o padrão de busca da verdade que emerge desse processo. Um padrão adequado requer um processo consultivo, no qual os participantes se empenhem por transcender seus pontos de vista individuais, a fim de funcionarem como membros de um corpo com interesses e objetivos comuns. Em tal ambiente a resultante é conquista do grupo, e não do indivíduo, e, sob tais condições, decisões anteriores podem ser revistas ou corrigidas sem melindres. O que aqui está sendo dito é o reconhecimento da eficácia de um método que muitas organizações sociais e empresariais utilizam plenamente. Tal método, como princípio organizador, é vital para o sucesso do esforço coletivo e estratégico de uma sociedade.
Nenhum princípio de autoridade efetiva é tão importante quanto dar prioridade à construção e manutenção da unidade entre os membros de uma sociedade e os membros de instituições administrativas. Não é tarefa simples para as organizações traduzir e tornar clara a dinâmica desse processo em que elementos contraditórios não constituem desagregação ou falta de unidade.
A tarefa diária dos homens públicos é servir ao povo. Esse dever implica ter um espírito desprovido de ambições próprias ou interesses menores. Trata-se de estabelecer valores nos quais os comportamentos individuais sejam confrontados diuturnamente pela ética do interesse público. Aliás esses confrontos estão na raiz da saudável e permanente tensão entre imprensa e governo -tensão que revela o espírito democrático de uma sociedade.
Nesse sentido, penso que a interlocução com a imprensa e o papel de mediador do jornalista levam para dentro do Estado um grau saudável de cobranças, quando a ótica da notícia está integralmente alicerçada na informação entendida como um serviço público. Por sua vez, a consolidação de princípios republicanos exige do Estado o dever de informar e o respeito ao direito à informação dos cidadãos. Essa é uma premissa cristalina e dela decorre que o padrão de relacionamento Estado/imprensa deve ser encarado, mutuamente, com tolerância, responsabilidade e liberdade.
Outra observação que fiz, na mesma ocasião do discurso, apontava para o conceito da informação "jornalisticamente trabalhada". Acredito ser esta a maior contribuição da imprensa a um país no qual grande parte do povo não tem acesso ao consumo de bens informativos produzidos a partir das técnicas e da ética do jornalismo. Isso diz respeito, principalmente, à capacidade de dar informações para que a cidadania seja exercida e à insubstituível ação civilizatória do jornalista ao dar voz aos que vivem em silêncio, ao interpretar fatos complexos dentro do repertório comum das pessoas.
Em resumo, como um dos problemas da mídia é conciliar velocidade com exatidão, a responsabilidade dos agentes públicos de prestar informações requer compreensão dessa natureza imperfeita. A lição é continuar a trabalhar, pacientemente e com firmeza, para que o Estado possa estabelecer padrões de comunicação com a imprensa capazes de fortalecer a ética do interesse público como o principal critério de relevância.

Luiz Gushiken, 53, é ministro da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Henry Isaac Sobel: Acordes pela paz mundial

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.