São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

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DÍVIDA HISTÓRICA

O pedido formal de desculpas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos africanos pelo passado escravocrata do Brasil é um daqueles gestos de grande valor simbólico. Se não repara um dano que é, por definição, irreparável, admite sem eufemismos a participação do Brasil no crime perpetrado durante séculos contra negros e africanos.
Nunca é demais lembrar o que representou a nódoa da escravidão. Várias dezenas de milhões de africanos foram reduzidos à condição de coisa para servir aos interesses econômicos de uma pequena elite. Milhões deles morreram nos abjetos porões dos navios negreiros e depois da chegada às Américas. O Brasil assume seu quinhão de culpa nessa ignomínia -a qual, diga-se, só teve a duração e a extensão conhecidas porque contou com uma rede de interesses estruturada em três continentes.
Entre os que mais lucraram com o comércio escravista estão os mercadores e a coroa portugueses, senhores-de-engenho, mineradoras e cafeicultores brasileiros e também potentados africanos que arrebanhavam conterrâneos e os vendiam como escravos. A justa distribuição de responsabilidades não pode ignorar o papel da Igreja Católica, que não apenas se beneficiou do fenômeno como ainda produziu "justificativas" teológicas para a escravidão.
O Brasil, como entidade política soberana e independente de Portugal, só surgiu em 1822. Seria um erro, porém, pretender minimizar por isso a participação do país nesse crime, já que sua formação social e econômica deriva em grande medida da experiência alimentada no período colonial. Lembre-se ainda que o Brasil foi o último país do mundo a promover a abolição, em 1888.
Paradoxalmente, embora o Estado brasileiro tenha acatado e favorecido a escravidão e as contribuições dos africanos tenham sido decisivas para formar nossa rica tradição cultural, o país foi num certo sentido também refém dela. Vários estudos vêem a manutenção da escravidão até tempos tão tardios como fator decisivo pelo atraso na gestação de um mercado de trabalho que teria sido importante para o surgimento de um capitalismo mais desenvolvido e de uma sociedade menos desigual.


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