São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nossos filhos estão na Febem

EUNICE APARECIDA DE JESUS PRUDENTE

"Nós não roubamos, aconteça o que acontecer, nós não roubamos!". A contundente advertência de um pai enérgico ao filho de 12 anos que furtara um pão está no filme "Cinderela Man" ("A Luta pela Esperança"). História real de uma família norte-americana atingida pela grande depressão, trata-se de um relato emocionante sobre como os laços familiares permanecem fortes, apesar da decadência e extrema miséria.


Discutimos ações de ressocialização, contenção e pacificação, mas precisamos trazer a família para a discussão


Atormentados que estamos pelas exigências sobre-humanas do dia-a-dia, pouco tempo reservamos para exercitar o afeto, sentimento fundamental na grande alquimia da transformação do homem. Há mais de três séculos, grandes educadores prescreveram o afeto como elemento primordial na formação social, política, racional e moral do homem.
Comenius (Jan Amos Komensky, 1592-1670), pai da didática moderna, considerava que educação se constrói com diálogo, não com punições. Jean Jacques Rousseau (1712-1778) coloca a bondade e a felicidade em patamares mais elevados que o talento. Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), precursor da nova educação, perpetuou o amor como objeto que deflagra o processo de auto-educação. Friedrich Wilhelm August Froebel (1782-1852), criador do jardim de infância, deposita na educação toda a responsabilidade do desenvolvimento da condição humana.
A citação de tão ilustres educadores pode, sem dúvida, despertar desconfiança nos que pouco ou nada crêem, afinal, em pleno século 21, ainda enfrentamos um desafio: ressocializar jovens em conflito com a lei.
Se nossos jovens contribuem para um sentimento generalizado de insegurança, por outro lado, o pessimismo organizado gera respostas violentas e alimenta um círculo vicioso. Acreditam os incautos que basta tirar um infrator das ruas para restabelecer a sensação de segurança. Eu me questiono: a geração dita madura, o que construiu para mudar essa realidade? Como educou?
Há uma doença social que atinge o que chamo de "pessoas maduras", aquelas que sentem necessidade de imitar os jovens, desqualificando o sentido educador em detrimento da vaidade, do medo de ser conservador, de anunciar a idade. Não há educação sexual, mas permissividade, e, assim, ignora-se a essência das pessoas. A liberalidade foi devidamente enfrentada e, agora, nossos filhos pagam o preço por serem vulneráveis aos apelos consumistas e sexistas. Por isso, não há como fugir da responsabilidade de termos a Febem em nosso quintal.
O ECA diz que as entidades que desenvolvem programas de internação devem fazê-lo com atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos. Parece evidente que a "personalização" coloca a relação com o jovem infrator em outro patamar, com ações assertivas, planejadas por assistentes sociais, psicólogos e a família. Discutimos ações de contenção, ressocialização, pacificação, mas precisamos trazer a família para a discussão, principalmente a que vê com distanciamento o problema vizinho acreditando que seu quintal se manterá intacto.
Minha visão feminista sempre foi crítica com a imagem de Maria, coração vermelho apunhalado (Mater Dolorosa). Considerava apelo excessivo às mulheres para aceitação de submissões masculinas. Todavia, nas lides da OAB-SP, conheci mães da Febem cujos filhos foram mortos em plena violência. Aí, compreendi: nunca tinha vivenciado tal nível de sofrimento! Hoje, temos uma diretriz política traçada com melhor atendimento ao adolescente infrator; ou melhor, para esses nossos filhos e filhas que não beberam demais naquele Natal ou experimentaram drogas, mas, por gravíssimas motivações, ofenderam a sociedade justamente nos valores e bens tutelados pelo direito; eles agora precisam de nós, pois são nossos filhos.
A descentralização, sendo executada como está, vai propiciar melhor atenção e proximidade com a família consangüínea. Estamos construindo o futuro com 41 unidades de internação para 40 adolescentes e internação provisória para outros 16. Casos mais graves, que envolvam distúrbios psicológicos, serão tratados na Unidade Experimental de Saúde. Iniciativa pioneira no Brasil, conta com o apoio da Universidade Federal de São Paulo e com a Associação Beneficente Santa Fé.
Em janeiro, a Febem apresentou o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo, com foco na psicoeducação, trilha fundamentada que os mestres citados acima nos legaram há mais de três séculos. O projeto pedagógico é complexo e prevê inúmeras medidas, entre elas a adoção de conceito de família, além da consangüinidade. É a total personalização do atendimento e a conseqüente afetividade do educador.
Proponho aos pais-cidadãos, sejam eles biológicos, adotivos ou voluntários, que assumam a responsabilidade na reintegração dos jovens. Perto da família e dos amigos, a recuperação poderá ser ainda mais bem-sucedida, em que pese que o índice de reinternação em São Paulo seja de apenas 20%, bem abaixo do sistema penitenciário. A Febem é, primordialmente, uma entidade de contenção, mas compará-la com presídio é, no mínimo, cometer equívoco: até mesmo os leigos em direito sabem que menores são inimputáveis diante da lei.

Eunice Aparecida de Jesus Prudente, 60, advogada, professora da Faculdade de Direito da USP, é a secretária da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.


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