São Paulo, terça-feira, 16 de maio de 2006

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Salvar a pátria

Persistir no imenso sacrifício fiscal que o país sofre e até sacrificar mais, admitindo aumentar o superávit fiscal primário para 7%. Tomar essa iniciativa, de aparente submissão ao ideário dominante (dominante só entre nós, não no resto do mundo), por razões opostas às desse ideário. Tomá-la para fortalecer a mão do governo na hora de jogar duro com os rentistas e de iniciar novo ciclo de desenvolvimento baseado na democratização de oportunidades para aprender, trabalhar e produzir. Anunciar aos bancos -e às poucas milhares de famílias que eles representam- que a festa acabou. Não receberão mais do que 5% de juro real. Confiar que a maior parte desse capital não encontrará aplicação mais atraente. Não confiar, porém, demais: reforçar os controles sobre as entradas e saídas de dinheiro. Assegurar alternativas aos poupadores, ajudando os bancos privados e públicos a organizar instrumentos que mobilizem poupança de longo prazo para investimento de longo prazo. Tais instrumentos incluiriam a formação de mercado em papéis lastreados por créditos hipotecários e o lançamento de fundos previdenciários, sob administração profissional e competitiva, vocacionados para o investimento diversificado em novos empreendimentos. Acelerar, por intervenções pontuais no mercado cambial, a desvalorização do câmbio que essas medidas acarretarão, até alcançar taxa de pelo menos 2,50. Cortar a despesa pública de duas maneiras principais: por redução drástica dos juros da dívida pública e por aumento da idade da aposentadoria. Quem quiser se aposentar antes, poderá fazê-lo, mas receberá menos. Deixar a indispensável simplificação dos impostos -rica em conflitos federativos- para depois. Trazer para o regime da lei a mais da metade de trabalhadores brasileiros que trabalha sem carteira assinada. Para isso, abolir progressivamente os encargos que incidem sobre a folha de salários e financiar os direitos dos trabalhadores mais pobres com base nos impostos gerais. Multiplicar organizações como o Sebrae e a Embrapa para transferir tecnologias e práticas produtivas avançadas aos milhões de empreendedores que representam o motor da economia brasileira. Definir a melhora da qualidade do ensino público como compromisso preeminente da política social: garantindo, por responsabilidade da União, mínimos de investimento por aluno e de desempenho por escola em todo o país, treinando o professorado para ministrar ensino analítico e capacitador e oferecendo apoios e oportunidades extraordinários aos alunos pobres mais talentosos e esforçados. Iniciar três conjuntos de grandes obras: a recuperação das rodovias federais (que estão literalmente sumindo); o aumento rápido de nossa produção de energia, sobretudo pelo aproveitamento dos recursos hídricos e biológicos da Amazônia e do oeste brasileiros; e a construção de rodovias e ferrovias que dêem base física à integração sul-americana, mais importante do que nunca nesse momento em que é denunciada como devaneio. E, no campo da reforma política, priorizar o financiamento público das campanhas eleitorais para começar a livrar a vida pública da sombra corruptora do dinheiro.
Esse projeto desagradará a direita e a esquerda. Todos os dias leio na imprensa que o Brasil não precisa de salvadores da pátria e que não os quer. Concordo que não quer. Insisto em que precisa. A força que, no poder, executar esse projeto salvará a pátria.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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