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MÁRIO MAGALHÃES
A cultura da morte
RIO DE JANEIRO - Nos treinamentos de tiro, os policiais militares do Rio
recebem uma pontuação de acordo
com a parte do boneco-alvo atingida.
Furo na cabeça e no coração vale nota máxima. Bala em órgãos não-letais, mesmo capaz de paralisar o suspeito, ferindo-o, vale menos.
Até o ano passado era assim. Ontem, não havia na polícia quem respondesse se mudou. Em outros países, a mira fatal só é treinada para
casos especiais, tipo sequestro com reféns, como o de segunda-feira.
Lição escolar: no Rio, em qualquer
situação, PM bom é PM que mata.
Em São Paulo, o regulamento da
corporação determina: violência desnecessária contra ser humano é falta
leve; contra um animal da PM (cão,
cavalo), falta média.
Moral da paulada: é mais grave pegar pesado com bicho que com gente.
Academias militares transmitem,
mesmo em aulas técnicas, os valores
caros às suas instituições. O conjunto
de regras os sintetiza e cristaliza.
O currículo fluminense e as normas
internas paulistas escancaram o desprezo pela vida humana disseminado em nacos robustos das PMs. Com
os dois assassinatos no Rio, descobriu-se uma possível coincidência
operacional.
O bandido da linha de ônibus 174
morreu asfixiado por policiais no
camburão. Foi entregue morto ao
pronto-socorro. Em outubro do ano
passado, um PM de São Paulo relatou à repórter Lilian Christofoletti,
desta Folha, como fazia para não entregar vivos criminosos a hospitais:
no caminho, provocava sua morte.
Num caso, o discurso do método.
Noutro, sua aplicação. A cultura da
morte, do falar ao fazer.
Por mais selvagem que tenha sido,
e foi de fato animalesco, o bandido
do Jardim Botânico, cercado e desesperado, ameaçou, atirou, simulou.
Até o último instante, porém, antes
de ser atacado, não matou. A refém
morreu porque a polícia não quis esperar por uma rendição que talvez a
salvasse.
O homem alucinado, a seu modo,
optou pela vida. A PM achou melhor
deixar para lá. Em uma semana, se
tanto, tudo isso será esquecido.
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