São Paulo, sexta-feira, 16 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÁRIO MAGALHÃES

A cultura da morte

RIO DE JANEIRO - Nos treinamentos de tiro, os policiais militares do Rio recebem uma pontuação de acordo com a parte do boneco-alvo atingida. Furo na cabeça e no coração vale nota máxima. Bala em órgãos não-letais, mesmo capaz de paralisar o suspeito, ferindo-o, vale menos.
Até o ano passado era assim. Ontem, não havia na polícia quem respondesse se mudou. Em outros países, a mira fatal só é treinada para casos especiais, tipo sequestro com reféns, como o de segunda-feira.
Lição escolar: no Rio, em qualquer situação, PM bom é PM que mata.
Em São Paulo, o regulamento da corporação determina: violência desnecessária contra ser humano é falta leve; contra um animal da PM (cão, cavalo), falta média.
Moral da paulada: é mais grave pegar pesado com bicho que com gente.
Academias militares transmitem, mesmo em aulas técnicas, os valores caros às suas instituições. O conjunto de regras os sintetiza e cristaliza.
O currículo fluminense e as normas internas paulistas escancaram o desprezo pela vida humana disseminado em nacos robustos das PMs. Com os dois assassinatos no Rio, descobriu-se uma possível coincidência operacional.
O bandido da linha de ônibus 174 morreu asfixiado por policiais no camburão. Foi entregue morto ao pronto-socorro. Em outubro do ano passado, um PM de São Paulo relatou à repórter Lilian Christofoletti, desta Folha, como fazia para não entregar vivos criminosos a hospitais: no caminho, provocava sua morte.
Num caso, o discurso do método. Noutro, sua aplicação. A cultura da morte, do falar ao fazer.
Por mais selvagem que tenha sido, e foi de fato animalesco, o bandido do Jardim Botânico, cercado e desesperado, ameaçou, atirou, simulou. Até o último instante, porém, antes de ser atacado, não matou. A refém morreu porque a polícia não quis esperar por uma rendição que talvez a salvasse.
O homem alucinado, a seu modo, optou pela vida. A PM achou melhor deixar para lá. Em uma semana, se tanto, tudo isso será esquecido.


Texto Anterior: Brasília - Valdo Cruz: A conta da camisinha
Próximo Texto: José Sarney: Geísa, a professora de olhos tristes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.